A alma das coisas

Já havia dois anos que João Ribeiro partira dessa vida. Era seu marido; tinha os seus defeitos mas fora um bom marido. Coitado! Havia sido um bom marido sim! Por isso guardara o luto com um certo orgulho. Um luto justo.

Agora o período de luto terminara e queria ser alegre outra vez. Como ela era no tempo em que João Ribeiro era vivo e alegre também. Mas o problema eram as coisas. Que coisas? Todas as coisas da casa choravam de saudades de João Ribeiro. E de todas, a mais triste era a mesa; mandou vendê-la.

Um dia acordou bem disposta e pensou que a tristeza havia acabado — durante todo o período do luto havia dormido na sala para não ver e sentir a tristeza das coisas que ficavam no quarto — mas , quando se sentou à mesa para tomar café, uma tristeza medonha tomou conta de todo o seu ser. Bastou olhar para a mesa e sentiu a sua tristeza pela ausência de João Ribeiro.

Então resolveu se desfazer da mesa. Comprou outra. Uma que nunca havia visto o João Ribeiro. Teve que trocar as cadeiras também para que essas não influenciassem a mesa nova. Agora tomava o café mas tranqüila e chegara a sentir — nesta manhã ensolarada — uma ponta de alegria.

Mas todo esse tempo dormira na sala. Não tivera coragem de entrar no quarto ainda. Estava esperando ficar mais refeita para poder lutar com as coisas que ficavam lá; e seria uma luta terrível! Só de imaginar já sentia uma tristeza tão intensa , de fazê-la chorar horas e horas.

Enfim, sentiu-se preparada — embora sem muita confiança — e entrou no quarto. Entrou

bem na hora de dormir pois, assim, tonta de sono, não teria muito tempo de reparar nas coisas.

Qual o quê! logo que entrou no quarto , o sono desapareceu. A primeira coisa que viu foram os chinelos de João Ribeiro. E como estavam tristes!