Diamante -- crônica de um amor pirata
O mormaço de agosto sufocava. Talvez quando já estivesse em alto-mar, a temperatura arrefecesse. Mas, não. Quando subiu a bordo do veleiro, o jovem marujo que nunca estivera no mar descobriria que a vida de um pirata estava tão distante do conforto quanto a costa da lendária Atlântida estava distante de qualquer continente. O rapaz não nutria interesse pelo andamento das disputas entre as coroas iluminadas daquele século; mas sabia que o capitão que o contratara era inimigo de todos os reis da Europa. Para o jovem pirata que embarcara para a sua primeira pilhagem, a vastidão do oceano significava apenas uma coisa: liberdade.
Liberdade sem conforto, sem segurança, sem água, sem comida, sem travesseiro, sem latrina. Em terra, uma jovem espanhola jurou esperá-lo; ele jurou regressar com um diamante. Não era a tônica das discussões dos salões de Paris, nos quais os Iluministas, indignados com a ordem das coisas, teciam críticas ao rei, à Igreja e à sociedade, que alimentava a imaginação do jovem pirata. Era o sonho de fazer fortuna, de enriquecer, de espraiar todos os seus sentidos em algum remanescente do Éden perdido nos mapas do capitão. O marujo, no entanto, sabia que seu projeto de vida estava condicionado à sorte das pilhagens; ele sabia que era um criminoso.
Inteirado sobre o itinerário e o propósito da viagem, o rapaz esperava chegar à costa nordeste do Brasil em meados de setembro. Sabia-se que um veleiro holandês carregado de especiarias e a serviço da Companhia das Índias Ocidentais faria escala no porto do Recife antes de regressar à Europa. A missão pirata consistia na interceptação e saque deste navio.
Porém, nesta viagem o jovem pirata não enfrentaria apenas a fúria dos reis de Inglaterra e França, a espada dos corsários, os canhões dos navios inimigos, a fúria do mar ou o desafio de lembrar-se do local onde enterraria os despojos do saque ao veleiro holandês no porto do Recife; o esperançoso pirata digladiar-se-ia com a aspereza da realidade. Em duas semanas, a carne salgada em conserva acabou; o rum e o vinho tiveram de ser racionados; 2/3 do estoque das frutas, cozidas para conserva, tiveram de ser lançados ao mar depois que um fedor pútrido castigou os marujos por dois dias e duas noites inteiras. O que mantinha o pobre marujo eram os biscoitos de marinheiro e a água salobra dos tonéis de acácia.
Dois séculos depois da era dos descobrimentos os homens do mar ainda utilizavam-se das técnicas de sobrevivência dos pioneiros exploradores. Água, sal e farinha. Os biscoitos dos marinheiros, se mantidos sob eficiente conservação, duravam anos. Contudo, homens expostos aos imperativos do mar, obrigados a puxar cordas, içar velas, cuidar da manobra do veleiro dia e noite sob a mercê exclusiva dos ventos, demandavam mais sustança do que os frugais biscoitinhos poderiam oferecer. No começo de setembro, ainda sob intenso calor, o marujo começou a sentir os efeitos da exposição prolongada às tribulações do mar.
Antes de embarcar, o rapaz ouvira histórias sobre as tripulações piratas. Os homens que iam para o mar a serviço das coroas viviam restritos à observância rígida de um código de ética cujo desrespeito era passível de severas punições. Mas sobre o convés pirata não havia crime de lesa-majestade. Numa nave sob a bandeira de França, por exemplo, se um marujo morria -- e muitos morriam -- rezava-se o rito completo, fazia-se tudo conforme a tradição da religião. Um padre fortalecia os ânimos da tripulação temerosa das tempestades; e, quando uma vaga procelosa arrastava para as profundezas do mar algum homem, todos os outros homens o pranteavam. No navio pirata, porém, os marujos estavam a serviço da ganância, daquilo que era condenável aos olhos de Deus e dos homens.
Numa tórrida manhã, observaram aves de asas longas voarem próximas à linha do horizonte, ao longe. Ao entardecer, fragmentos de vegetação foram recolhidos a bordo; as evidências de terra animaram a tripulação alquebrada. O jovem pirata realizou todas as suas tarefas neste dia alimentado mais pelo revigoramento das esperanças pela aproximação do destino da viagem do que pelos biscoitos miseráveis. Antes que o Sol desaparecesse sob a linha Oeste do horizonte, alguém gritara: "Fogo!, fogo!, tiro de canhão a estibordo!, tiro de canhão a estibordo!". Não houve muito o que fazer, tudo aconteceu rápido demais. Subitamente, o nosso marujo viu-se armado com uma pistola de pederneira; o pirata que o armara ordenou para que ele se posicionasse junto à murada do navio.
O ribombar e o clarão dos tiros dos canhões do veleiro inimigo que se aproximava formavam um quadro fantástico para os piratas desesperados. Estes, confusos e amedrontados, gritavam, choravam, descarregavam o único tiro das armas de pederneira e, sem esboçarem preocupação em recarregá-las, as atiravam ao mar, na direção dos corsários. Não há registros das últimas palavras do nosso pobre jovem pirata; não há, aliás, registro algum desta noite fatídica. Minto, há sim, um: cinco linhas no diário de bordo do veleiro corsário sob a bandeira da Inglaterra: "Quinta-feira, 22 de setembro do anno da Graça de 1785, costa nordeste do Brazil, domínio de El-Rei de Portugal. Ao anoitecer, demos com infame nave sob bandeira pirata a bombordo de nossa posição. Em nome do rei, nós a levamos a pique juntamente com toda a sua criminosa tripulação. Seguimos para a Inglaterra".
Não foram somente os navios a serviço das coroas, os portos nas colônias ou, no geral, as populações costeiras que sofreram com a pirataria. A tragédia não conhece os limites da circunscrição da lei, dos códigos de ética de corsários ou piratas: ela alcança a todos. De regresso à Europa, o corço inglês do veleiro que afundara o navio pirata, encantara-se por uma jovem espanhola. Ele esforçara-se para conquistá-la; a moça, porém, demonstrara-se resistente, receosa. Por meses o corço a cortejou sem sucesso. Um dia, porém, a jovem espanhola capitulou perante as armas do insistente pretendente, ele a conquistara com um presente caríssimo que selou a sua conquista definitiva: um diamante.