Amor auditável
Vagava por estreito corredor de um supermercado, aqui em União, e notei um casal, de mãos dadas, vindo em minha direção. Lá estávamos nós: o casal, eu e o apertado corredor, que não nos permitia passagem sem que nos dissolvêssemos. “E agora? (pensei) Sigo ou retrocedo?”
Dispunha de cinco metros de corredor para deliberar. O casal avançou dois passos, e a distância que nos separava diminuiu pela metade. Era um casal disforme e ligeiro, mas aparentemente sintonizado na mesma faixa amorosa. Ele, oitenta por cento curvado, possuidor de uns dois metros ou mais de altura, rosado e robusto; ela, um metro e meio de extensão, não mais, parcialmente pálida, como notei pela cor dos olhos (ela estava de máscara), e totalmente ereta.
Tratava-se de um casal desairoso, não digo “feio”, no sentido strito sensu do termo, mas desairoso, desproporcional aos olhos dos curiosos. Um casal que por onde quer que passe dificilmente não causará reparo, quer por sua especificidade visual, quer por sua pressa. Diferentaço em termo clássico do que temos como padrão acerca da forma material de um casal.
Um casal que, quanto à velocidade no passo, porém, equiparava-se; aparentava, nas entrelinhas, mais apressado que ligeiro. Julgo que cada passo da dupla equivalia, realizando a medição em nosso sistema métrico, a não menos que dois metros. Um casal cujo andar era velocíssimo, digno de nosso tempo.
Mais dois passos, e haveria colisão entre nós, na certa. Busquei evitar o fim trágico. Olhei rapidamente entre as inflacionárias prateleiras, esperançoso em encontrar uma brecha que me coubesse, pela qual pudesse escapar sem que fosse preciso invadir, ainda que provisoriamente, a cumplicidade do casal. Eram tão dois em um, tão um em dois, que pensei em levá-los no bolso, para protegê-los das maldades, dos olhares e do desamor do mundo.
Naturalmente meu bolso não cabe semelhante amor, um amor tão grande e impávido colosso. Meu bolso é pequeno e nele mal cabem minhas dívidas. “Se pelo menos houvesse uma campainha, que me permitisse contatar o departamento de Obras e Serviços... Pediria que alargassem urgentemente (pelo amor de Deus e desse casal, que parece tratarem-se da mesma pessoa) este estreito corredor e, se possível, construíssem uma passarela, dedicada aos casais que por aqui passam, passaram e passarão, de mãos dadas, em destino ao coração.”
Naturalmente teria o pedido recusado. Não recorreria. Compreenderia perfeitamente a decisão do departamento de Obras e Serviços. Incontestável a supremacia dos negócios frente a interesses conjugais. Entre a construção e derrubada de uma prateleira há mais capitalismo do que sonha nossa vã burguesia. Os embates entre bem-estar social e interesse de classe são decididos em dólar, infelizmente.
A ciência já comprovou que andar de mãos dadas desacelera, literalmente, o coração, aumenta a autoestima e o colesterol bom, diminui o estresse e, é claro, ajuda a avançar. Para onde? É uma pena não ter a ciência resposta para essa pergunta. Por outro lado, isso também é uma alegria, pois podemos, cada qual a seu modo, construir a nossa resposta para a questão. Quem aprecia é só reproduzir. As inscrições estão abertas. Eu, de minha parte, admiro esses casais que andam de mãos dadas, principalmente em corredores estreitos de supermercados. Admiro essa prova de amor auditável. Penso que é deles a maior parte do reino dos afetos.