Aparições de viagem
É dever do cronista decifrar o cotidiano incluindo pequenos mistérios. O ônibus estava lotado. Hora de voltar para casa. No trajeto eram naturais certas abordagens dos vendedores de rapadura, pastel, e amendoim nas rodoviárias do país. Tarefa quase sempre de menino com cesto de vime, firme contribuinte para assistência da família nas despesas. Provocavam descontração entre gritos de “barato aqui! Compre melhor comigo! Tenho chocolate, rapadura, pastel!” • Quando somos crianças inventamos razões para conquistar guloseimas. Verdadeira mágica. Os vendedores acertavam sempre. Estimava-os em função do trabalho, pelo decorrer das estações, durante longos anos. Eram os meninos do cesto. O cesto de vime, fabricados pelas mãos de Tombo. Havia uma piada ligada aos ambulantes. Era assim: O gaiato indagava sobre o conteúdo do cesto.
-O que você tem no cesto? (Coçando a cabeça).
-O garoto respondia item por item. Vinha a troça:
-E no sábado? Alguém repetiu a brincadeira enquanto todos se acomodavam nas poltronas antes da partida. Uma noite mal dormida numa excursão longa possui efeito demolidor. Dentro do ônibus entreouvi o piorrinha ambulante falando alto.
- Dê licença para o senhor se sentar!
O garoto reparava no passageiro, também menino, piorrinha, acomodado no banco, enquanto o velho moído, permanecia reto no corredor apertado. A viagem seria longa. Aquilo estava errado.
- Os mais novos dão lugar aos mais velhos! Dê lugar ao senhor! Sou ambulante, mas sou educado.
- Fosse eu dava o lugar... Era garoto falando com menino. O pai sentado ao lado disse, seco.
-Não levanta. Fica aí! O filho de boas já levantava.
-Fica, disse o pai.
No fundo do ônibus um bêbado gemeu alto e trêmulo.
- Mal educado!
Algumas vozes enjoaram enquanto o motor começava a roncar avisando a partida. Houve um princípio de tumulto contra o pai injusto. O homem se defendeu.
- Licença tem para tudo, mas quero ver alguém pedir licença para choramingado de criança.
O velho permanecia reto e cansado.
- Licença tem para tudo, mas quero ver resolução para choramingado de criança. Repetiu e levantou. Honesto, firme, cedendo o lugar ao idoso que permaneceu na janela, viu o mar, percorreu pedaço de cidade onde antes era só casario e desceu longe em Moinhos.
Em cada parada outra leva de passageiros ocupava lugares em busca de destino. Na estação 77 subiu uma senhora que não era bonita nem feia. Usava um leque com motivo de cisne quando se abria. Dela nascia outra criatura sensível misturada ao perfume de pitanga. Brisa e perfume eram uma só alma odorando a cada imagem transcorrida. Sensação inaparente que agradava. Passei para as anotações guardando as palavras do ambulante na caderneta de notas.Tudo anotado. Na primeira parada adormeci. Acordei sem saber se carregava ainda comigo a pasta ou havia extraviado na estação. Desatino fantasmagórico fruto de inquietação nervosa. Teria sumido? Alguém poderia... Quando recobrei a consciência me encontrava acomodado ao lado da diarista que havia subido na parada 1010. Carregava uma gaiola vazia. O arame reluzia colado ao vestido acima dos joelhos. Morena café e de corpo bem feito. Cintura desenhada pelo laço do avental. Rosto bonito, cabelos brilhantes, teara rosa. Tímida. Procuraria no baú da alma as palavras mágicas que providenciariam encanto ao momento. Por sorte encontrei meu material de trabalho pelas mãos do marinheiro atrás de mim.
- Senhor! Estava caída a pasta com estas folhas debaixo do banco. Os meses embarcados lhe deram a tez da ausência. Agradeci. No que aproveitou para mostrar a fotografia da mãe e do pai. Pai e mãe no quintal da casa. Havia o varal com roupas lavadas. Ao fundo um casal de gansos procurou a pupila do fotógrafo para maior apreço ao retrato. Ao meu lado a diarista. Talvez fosse bom evitar algo do tipo: “vai para a capital?” Puxaria um trílogo, disposto a matar o tédio do percurso; porque puxar assunto é melhor do que lamento. Indaguei expansivo e cômico: Está montando apartamento para o canário?
Ela respondeu expressamente “não”. O "não" imponderável e massacrante. Procurei no ruído do motor o retorno a mim mesmo. Os caminhões passando lado a lado do ônibus e a estrada movimentada. Depois o veículo prosseguiu sempre reto em direção ao norte. A doméstica cedeu e disse:
- Soltei o canarinho. Era novinho. Tive pena do canto bonito aprisionado. Que perfeição absoluta! Estou levando a gaiola para decoração de apartamento. A patroa pediu a gaiola para botar vaso dentro. Fica bonito na sala. Ela mora em casa de apartamento, sabe? É! Apartamento... Casa de apartamento, coisa de rico. O senhor adivinhou, não foi? O senhor disse apartamento. Como foi que adivinhou? Não sei. Respondi. Lacônico. Tirou do meu silêncio algo que não disse.
Retorno a postura de viajante. Abro o jornal e começo a reler ofertas, espantos e vinhetas.
Quinhentos quilômetros haviam se passado quando o fenômeno ocorreu.Todos se alimentavam entre ruídos de pacotes, choro de criança, tosse de cigarro e roncos. Neste ponto exatamente reapareceu o mesmo ambulante do início da viagem com o mesmo cesto de vime. Examinei-lhe a fisionomia. Como poderia ser o próprio? Estaria sonhando acordado? Dormi até o instante em que o avô desceu em Moinhos. Estávamos a quinhentos quilômetros da primeira estação. Observei claramente. Era ele. Vendia pacote de balas de menta ao padre alemão quando o veículo partiu. Olhei e vi. Tivesse colhido o nome do garoto para o caderno de notas. Seria destaque na próxima edição. “Exemplo de boa educação!” Dar lugar aos mais velhos é lição que deve ser exaltada. Tivesse adquirido algumas mariolas. Quando chegamos em casa ligaria para o Nestor. Que estranho. Como poderia ser tão rápido?
- Com licença, disse o inesquecível e afortunado Nestor ao telefone. Não precisa dizer nada. O menino se chama Alencar e tem irmão gêmeo cujo nome é Aldemar. São ambulantes. Um vende na estação e mora com o pai. O outro vive com a mãe e reside a quinhentos quilômetros daqui. São netos de Sebastião. Lembra aquele senhor idoso que criava canário?
Pela descrição havia desembarcado em Moinhos.