Mau humor ao volante
Desconheço se a ciência já se debruçou sobre a complexa relação entre volante e mau humor. Eu, de minha parte, tenho investigado extraoficialmente as possíveis causas dessa patologia autopsicomotora. Vejamos o caso em apreço:
É um rapaz muito simpático, muito educado, muito solícito, muito bom humor demais até. Mas isso só vale se não estiver ao volante. Andando a pé e paisano, é um doce de pessoa: alegre, conversador, sorridente, polido na linguagem e nos gestos. Dirigindo, ao volante de um carro ou de uma moto quaisquer, o meu amigo J.K transforma-se completamente.
O cidadão J.K é bom humor, direitinho, altruísta, um amor de pessoa, excelente para viver em sociedade; o motorista J.k, ao contrário, é egoísta, desrespeitador, acelerador, personificação de mau humor, excelente para viver exilado em pista de fórmula 1.
O meu amigo cidadão J.K e o motorista J.K nem parece serem a mesma pessoa, mas suas digitais entregam: não apenas são a mesma pessoa, como moram e convivem em meio às mesmas regras e pessoas, as quais, cada qual, tem de se adaptar a essas duas personalidades diversas convivendo na mesma pessoa.
Eu mesmo, o precavido, tenho evitado contato e principalmente caronas do J.K motorista. E isso tem diretamente contribuído para o desenvolvimento econômico da cooperativa de mototaxista local. É que o cidadão J.K é cervejeiro e costuma, com frequência, visitar os bares da cidade e tem o hábito de me convidar para essas excursões, levando consigo, por tabela, o motorista J.K.
Ultimamente, o eu precavido, diante de convite dessa magnitude e natureza vindo do amigo cidadão J.K, tem respondido com um "Beleza. Vou chamar um mototaxi e chego já!" E o motorista J.K retruca: "Mas não precisa não. Eu vou te buscar. Tô perto da tua casa." (Coincidentemente, quando desses convites, o motorista J.K sempre diz "estar perto da minha casa", mesmo morando do outro lado da cidade, o que de certo modo não é de todo uma inverdade, suponho.)
Mas nem sempre foi assim. Houve ocasiões em que o eu precavido não costumava pensar antes de beber, e caía na tolice de aceitar as caronas do motorista J.K. No trajeto, o amigo cidadão J.K, o bom humor, direitinho, altruísta, um amor de pessoa, excelente para viver em sociedade, ausentava-se e baixava em seu lugar o motorista J.K, o egoísta e acelerador. Felizmente cheguei mais ou menos vivo ao destino em quase todas essas ocasiões e com apenas algumas vergonhas morais e sem prestar contas à polícia.
Quase vivo, como disse, porque existiu um dia fora da curva, em que houve a fuga da blizt do BPTran, na qual tive a impressão de ter morrido duas vezes, não menos, em face da deliberada fuga que o motorista J.K empreendeu diante da presença dos agentes de trânsito. E como se não fosse transgressão suficiente, desferiu aos agentes gratuitamente gestos e palavras de baixo caráter. De lá para cá, carona só aceito de desconhecidos.