Indiferença

Em 2006, a britânica Joyce Vincent foi encontrada morta em seu apartamento em Londres. A investigação descobriu que a moça tinha morrido já fazia mais de dois anos. Ela era basicamente apenas um esqueleto posicionado diante da TV ainda ligada. Sua morte passou totalmente despercebida. Como isso foi possível? Culpe o "monstro da indiferença".

Essa frase é de uma crônica de Otto Lara Resende chamada "Vista Cansada". Nesse texto de tema profundo e sublime simplicidade, ele reflete sobre a estranha tendência das pessoas de não prestar atenção nas coisas que acontecem ao redor delas. Otto Lara escreveu essa crônica em fevereiro de 1992 e viria a falecer em dezembro do mesmo ano. "Um criança vê o que o adulto não vê", escreve ele. Otto manteve esse olhar de criança até o fim de sua vida.

Descobri quando Otto Lara Resende faleceu pesquisando no Google. Hoje isso é corriqueiro. A internet está o tempo todo oferecendo distrações, disfarçadas de "entretenimento". Na época em que Resende escreveu "Vista Cansada" a internet ainda demoraria para se fazer onipresente. Os celulares da época ainda eram tijolos que só faziam ligações. Mesmo assim, as pessoas já viviam distraídas. Motivos para as pessoas andarem como sonâmbulas, sempre os houve. A vida moderna torna o homem taciturno, ensimesmado. Psicólogos, sociólogos e neurologistas se preocupam com os efeitos nocivos das redes sociais e essa coisa toda. Mas acho que o problema é mesmo o próprio ser humano e sua miopia mental. Miopia que, se não tratada, pode evoluir para uma cegueira quase total em relação a tudo em volta, salvo pela área abrangida pela pequena tela retangular de um smartphone.

'Ver não vendo'. Otto escreve que existem, todo o tempo, coisas, gente e bichos para se ver. Mas as pessoas não prestam atenção. Se ele se afligia com isso no final de sua vida, no início dos anos 90, imagino como ele reagiria se visse como é a situação hoje.

A indiferença é um monstro cego. As vítimas dele morrem por não serem vistas por seus semelhantes, ou serem vistas por apenas uma fração de segundo nos stories do Instagram, antes que a nossa atenção seja sequestrada por outra coisa qualquer que pipoca em seguida por lá. Pessoas deprimidas isolam-se diante de uma tela, seja a do celular ou da TV. Em alguns casos morrem assim, como aconteceu com a pobre Joyce Vincent.

Não é possível determinar com certeza o que arrastou Joyce para a quitinete fria e triste em que passaria seus últimos dias. Afinal, ela era jovem, bela e inteligente. Tinha muitos conhecidos. Mas pode ser que não tivesse nenhum amigo. Houve quem não se conformasse com o mistério: fizeram um documentário, "Dreams of a Life", que recomendo a qualquer um que se interesse pelo caso. Mas adianto que ele não oferece muito esclarecimento. Só podemos imaginar como Joyce se sentia.

Eu imagino. Imagino que ela se sentisse como o rapaz da crônica de Carlinhos Oliveira, "A Árvore de Ouro", de 1962. Ele aceitou morar temporariamente no apartamento de um amigo que tinha ido à Europa. O lugar era frio e deprimente. Frio e deprimido foi ficando a alma do rapaz. O da crônica se salvou quando finalmente abriu sua janela e ficou maravilhado com aquilo que viu. No caso de Joyce, era preciso mais. O quê exatamente, isso nunca saberemos.

Renan S F Almeida
Enviado por Renan S F Almeida em 10/08/2021
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