Crônicas Médicas - Não pude fazer nada!
Um dos maiores desafios para todo e qualquer profissional de saúde é, sem dúvidas, a transmissão de más notícias. Pensamos, refletimos e, muitas vezes, não sabemos como contar para a pessoa à nossa frente que ela ou alguém próximo possui uma doença terminal, tem um prognóstico ruim ou foi a óbito. Nesse ponto, as pernas tremem, as mãos suam, a cabeça fica zonza, a vista escurece e a pressão cai. Por esse motivo, muitos cursos oferecem, durante a formação, aulas sobre o tema, dando oportunidade para que os alunos pratiquem, em diferentes cenários, técnicas que auxiliem nessa situação.
Ainda em meu segundo ano da faculdade de medicina, durante as aulas de Habilidades de Comunicação, Gestão e Liderança, fomos apresentados ao Protocolo SPIKES, material criado para auxiliar na transmissão de más notícias. Enquanto a professora falava e nos mostrava o significado de cada letra no protocolo, vinha à minha mente uma história que sempre ouvi de meu pai e meus tios: o dia em que descobriram que minha avó não passaria mais um Natal sequer junto da família.
Assim, quando a aula acabou, pedi para que meu pai me contasse novamente aquela passagem. Dessa forma, poderia comparar a experiência que ele passou com aquilo que foi mostrado a nós, estudantes.
* * *
“Na noite do dia 24 de junho de 1999, Dia de São João, fomos todos na Festa Junina da Água da Fartura”, assim meu pai começou a contar sua história, já com a voz carregada de saudade. “Foi nesse dia que a sua avó sentiu a primeira dor, que achamos ser efeito do chocolate quente que ela havia tomado, mas que se mostraria ser em decorrência do câncer que tinha contraído.”
Aqui, uma pausa para relembrar a sequência dos fatos. Assim que se recordou, meu pai continuou seu monólogo:
“Com a insistência daquela dor, já no início de julho, seu avô a levou a um gastro, a fim de investigar um eventual problema estomacal (gastrite, úlcera ou algo assim).” Eu, em silêncio, apenas escutava essa história de uma forma que nunca havia escutado antes. “Começou, então, um tratamento com esse foco, quando uma endoscopia indicou a existência de uma úlcera no estômago.”
Quisera Deus que fosse apenas uma úlcera péptica. No entanto, o destino não reservava à nossa família o melhor dos desfechos.
“Os dias se passaram e novos exames foram feitos, até que se descobriu a existência de mais duas úlceras no estômago. Aquilo chamou a atenção dos médicos: em tão pouco tempo, não se formariam essas úlceras se, de fato, fossem simples úlceras! Então, a pior das suspeitas ganhava força: poderia ser câncer!”
“Antes mesmo de se confirmarem as suspeitas, o mundo do meu pai, seu avô Batista, desabou.” Meu pai fez mais uma breve pausa, respirou fundo e continuou. “Eu, o otimista e esperançoso de sempre, não entendi bem o desespero do meu pai, que chorava copiosamente do lado de fora do Hospital Regional de Assis. Afinal de contas, ninguém podia ainda ter certeza de que se tratava de câncer. E se fosse, também poderia ser curável. Infelizmente, ele estava certo. Anos mais tarde, eu escreveria, numa homenagem aos seus avós, que foi naquele dia, antes, portanto, da minha mãe, que o meu pai faleceu.”
Essa era uma frase forte para se ouvir. Imagino como tenha sido difícil a experiência de ver todo o processo do luto pelo qual meu avô passou. Meu peito começava a apertar de angústia apenas por pensar sobre isso. Não sei como meu pai encontrava coragem para contar, recontar e reviver toda essa história. No entanto, ele continuava firme, verbalizando cena após cena.
“Confirmada, infelizmente, a existência do câncer, começamos a cogitar a possibilidade de se retirar completamente o estômago. Meu pai trabalhara com um senhor que não tinha o estômago e levava uma vida relativamente normal. Foi nessa esperança que nos agarramos.”
“Tínhamos que decidir se minha mãe seria tratada do câncer em Assis ou se a levaríamos pra Jaú, referência nos tratamentos oncológicos. Foi nesse momento que contamos com a ajuda de uma grande colega, Regina Menocci, que encabeçava a Associação do Câncer de Palmital, e foi extremamente importante pra nós na luta que se iniciaria.”
“No dia 19 de setembro de 1999, ainda em casa, já que ainda estávamos aguardando os trâmites para o início do tratamento em Jaú, aconteceu uma das passagens que mais me marcaram nesse triste período”, disse meu pai, com a voz carregada de remorso. Talvez eu nunca o tenha escutado com tanto arrependimento. “Era um domingo, e como ela estava sem dor, estávamos, eu e o seu tio Waguinho, cantando. Foi quando ela nos pediu que cantássemos a ‘Ave Maria’, música que ela adorava. Como se trata de uma música muito alta, eu disse que minha voz não estava boa pra cantá-la e não atendi ao seu pedido. Até hoje, lembro-me desse dia com enorme pesar! Nunca mais tivemos um momento propício pra isso; nunca mais houve clima para tal!”
Via seus olhos marejarem. Desde o começo da história, seu olhar ameaçava chover, mas, nesse momento, parecia que enfrentaríamos tempestade.
“Passado esse domingo, naquela mesma semana, por volta da quinta-feira, minha mãe foi levada pra Jaú e submetida a vários exames, que levariam à conclusão da necessidade de cirurgia, marcada para o dia 27 de setembro. Nós, filhos, meu pai e sua mãe, Janeti, também fomos pra lá. Como não tínhamos onde nos alojar em Jaú, e dada a proximidade, voltamos para Agudos, na casa da Valdete, sobrinha da minha mãe. Estávamos tão esperançosos quanto à cura pela retirada do estômago, que, no sábado, 25 de setembro, comemoramos em Agudos o aniversário de 23 anos do Waguinho.”
“Chegou, então, o dia 27 de setembro de 1999. O dia que ficaria marcado na vida de todos nós.” Olhei-o carinhosamente, vendo-o dirigir seus olhos para cima, como se olhasse diretamente para minha avó. Achei, que ali, ele finalmente choraria e eu choraria junto. “Dirigimo-nos todos pra Jaú, apreensivos como a situação exigia, mas, ao mesmo tempo, com a esperança de que tudo daria certo. Nervosos, esperávamos nos corredores do Hospital Amaral Carvalho.”
Meu coração batia acelerado. Eu já sabia o desfecho da história, eu sabia o que aconteceria antes mesmo de meu pai pronunciar cada frase, mas, ainda assim, eu me via apreensivo para escutar uma vez mais como tudo transcorreu. Afinal, essa história é aquela que mais me inspira a ser um bom médico. Parte dos motivos para eu escolher a medicina é poder fazer por alguém o que não puderam fazer por nós, mesmo sabendo que eu tampouco serei capaz de salvar todas as vidas terrenas que passarem por mim.
“Depois de horas de cirurgia, surgiu no final do corredor o experiente médico oncologista responsável pela intervenção cirúrgica da minha mãe. Antes que meu pai conseguisse perguntar alguma coisa, veio a notícia que nunca queríamos ter recebido: não tinha sido possível retirar aquele mal da minha mãe.”
“Com uma frieza gélida de quem, com certeza, estava acostumado com aquele tipo de situação, aquele médico estraçalhou os nossos corações”, assim, parafraseando o médico, meu pai revelou as palavras a eles proferidas naquele dia. “Eu não consegui tirar o câncer. Estava toda tomada; era muito grande. Se eu tentasse retirar, ela morreria na mesa de cirurgia. O câncer está na região torácica, e as feridas que surgiram no seu estômago vieram de fora pra dentro.”
“Insistimos, então, por que ele não tinha, ao menos, tentado tirar? Ao que ele nos respondeu: ‘Eu queria tirar! Eu sou um louco por tirar tumores! Mas não foi possível. Apenas fiz um desvio pra ela se alimentar sem que a alimentação passe pelo estômago. Sua esposa não tem três meses de vida, ela não chega até o Natal. Mas ela não precisa saber que vai morrer. Embora ela seja inteligente e vá perceber.’”
Essa é uma das passagens que mais me marcam nisso tudo. Como, em sã consciência, um médico fala a um marido que sua esposa não chegará viva ao próximo Natal? Como assim ‘ela não precisa saber de nada disso’? Será que ele se lembra do que o Código de Ética Médica vigente na época dizia em seu artigo 59, atual artigo 34 do CEM?
“Ele disse isso e se retirou”, contou meu pai, balançando a cabeça de forma indignada com essa atitude. “Ficamos sem chão e sem a resposta que queríamos! Só conseguíamos chorar. O mundo desmoronou! Eram quatro homens adultos chorando copiosamente naquele corredor de hospital. Sequer pudemos vê-la depois da cirurgia. Tivemos que vir embora pra casa sem sequer nos despedir. Sem condições psicológicas pra nada, foi a sua mãe que teve que vir dirigindo. Foram duzentos quilômetros de choro e lamentação, e a tentativa, que mais tarde se revelaria frustrada, de alimentar em nós a esperança de um milagre.”
* * *
Assim, meu pai terminou a história. Não seguimos até o dia 05 de novembro daquele ano, quando minha avó, enfim, faleceu, confirmando o que o médico dissera: ela não chegaria até o Natal. Bem, ela sequer chegou ao aniversário de um ano do primeiro e único neto que conheceu: meu aniversário, que viria a acontecer seis dias após seu falecimento. Contudo, este breve relato traz ensinamentos relevantes que gostaria de compartilhar, especialmente com aqueles que estão inseridos na área da saúde.
Retornando ao começo do texto, onde falei sobre o Protocolo SPIKES, já há algum tempo venho pensando em como teria sido dada a notícia se o protocolo existisse já naquela época e o médico tivesse seguido os seis passos da transmissão de más notícias. Em primeiro lugar, pelo S (setting up the interview), ele teria, no mínimo, levado minha família para uma sala reservada e planejado melhor como conduziria suas falas. Seguindo apenas o bom-senso, sabemos que é, no mínimo, insensível e não profissional abordar tal assunto no vaivém dos corredores.
Mais uma vez, o Protocolo SPIKES poderia ter sido útil quando o médico revelou que não havia retirado o tumor. Dessa vez, o P (perception) e o I (invitation) impediriam que ele simplesmente supusesse que minha família soubesse tudo sobre o quadro de minha avó e que gostariam de ter as informações cuspidas daquele modo sobre eles. Assim, sem atropelos e consciente do grau de compreensão de todos, o oncologista deveria ter se atentado à forma com que contou o resultado da cirurgia (K – knowledge, quarto passo do protocolo). Será que a família gostaria de ouvir tudo daquela forma?
Infelizmente, não para por aí. Quando deu as costas à família, o médico deixou de cumprir com o E (emotions) do protocolo, momento no qual deveria dar suporte emocional para os envolvidos. Pelo contrário, seu gesto representou descaso e frieza, além de sequer dar espaço para discutir como se daria o cuidado paliativo de minha avó a partir dali (S – strategy and summary, finalizando o protocolo).
Assim, espero que profissionais e estudantes da saúde que leiam essa crônica lembrem-se sempre de zelar pela vida humana. Como já disse, transmissão de más notícias é um dos piores desafios de quem está nesse ramo, mas não é por isso que precisamos fazer com que se torne um pesadelo que assombre a vida de outros por muitos e muitos anos.