SALÁRIO DE POLÍCIA É UMA VERGONHA

Houve um dia em minha vida que a falta do que fazer associado a total falta de dinheiro me levou até uma agência bancária para pagar uma inscrição num concurso da polícia civil. Eu era muito jovem, tinha sede de poder, nada pra fazer e a idéia que ter um revólver em um coldre e um distintivo no bolso, me faria personagem de um filme texano do velho oeste; pelo menos era assim que eu pensava.

Graças a Deus eu não continuei com esta idéia...! Falo isso sem querer parecer soberbo, esnobe ou querendo mostrar uma imagem de superioridade; não é isso!

Hoje, vejo e revejo velhos amigos de infância que ingressaram no mesmo sonho que eu tive há décadas atrás e que já são formados e escolados como agentes da lei, homens da polícia, “tiras” ou na linguagem popular, “canas”. Alguns são policiais militares, espalhados nas mais diversas patentes; outros são federais e a maioria, são delegados, detetives e escrivões de polícia civil, também espalhado desde o Amapá até o Rio Grande do Sul e graças a Deus também, que eu não perdi o contato com estes velhos amigos.

Naquela época em que eu prestei concurso, era comum vermos os policiais conseguirem comprar sua casa própria, carro e com um pouco de sorte e uma “pitada” de política, alguns conseguiam passar férias em Cancun. Por mais que falassem do salário, ou proventos; não era nada astronômico, mas condicionava seu credor a ter “crédito” e de se orgulhar de ser um funcionário público.

Hoje, ser policial, com raríssimas exceções, é o mesmo que estar desempregado. Eu nunca vi tanto achatamento de salário e tanto desrespeito a esta classe tão importante para a segurança pública. Os homens com e sem farda, que usam um distintivo no bolso, são destratados, humilhados, esquecidos e ao final do mês, quando recebem seus holerites, se não tiverem coração forte, podem enfartar.

Como diria Lula, “nunca na história deste país” à polícia ganhou tão pouco; trabalhou mais, foi tão esquecida e humilhada. Nos últimos 20 anos, o número de greves de policiais, militares, civis e federais, foram tantos, que hoje, quando as categorias anunciam alguma paralisação, a sociedade já encara como um fato rotineiro.

Não se pode falar de polícia sem falar em um tema polêmico; CORRUPÇÃO. Todo mundo sabe de um fato ou de uma estória de alguém que já corrompeu ou de algum policial corrupto, mas isso não pode ser considerado como genérico, comum, rotineiro e generalizado. A força policial brasileira é composta de milhares de servidores, tornando-se impossível acreditar que não exista em nenhum lugar do mundo um conjunto de servidores policiais 100% incorruptíveis. No Brasil, país tão igual aos tantos outros, existem sim aqueles que trilham por caminhos ilegais, fazendo da sua arma, sua identidade privilegiada que pode PRENDER e seu brasão brilhante que serve para acondicionar uma carteira, como seus instrumentos de renda e fortuna, mas a maioria são homens honestos que estão ali por necessidade de ver um mundo mais justo e menos inumano.

Certo dia, o acaso me fez espectador de uma ação policial inusitada. Quatro agentes federais abordaram um veículo suspeito para conferência de documentação e para a surpresa de todos, dentro daquela camionete com um só ocupante, havia mais de 300 mil reais em barras de ouro, uma arma moderna do tipo pistola, pedras preciosas e dinheiro em espécie, que salvo maior juízo, era da ordem de 200 mil reais.

O motorista sem reagir ou esboçar qualquer tipo de argumento, ofereceu ao grupo de policiais toda a mercadoria que carregava em troca do silêncio e de sua liberdade. Os quatro policiais juntos, ganhavam cerca de 200 mil reais por ano e em apenas uma situação, eles poderiam garantir pelo menos, mais 24 meses de salário sem nenhum esforço. Bastava soltar aquele homem, não investigar a origem daqueles bens e dividirem o apurado com a ação nefasta.

Por razões pessoais eu não irei divulgar os nomes ou o nome da polícia, mas sem pestanejar, um dos integrantes do grupo policial sacou sua pistola, mandou que o homem permanecesse calado até que lhe fosse perguntado algo e o prendeu por tentativa de corrupção policial, porte ilegal de arma e por estar de posse de valores sem a comprovação de origem.

O rito natural foi feito e o homem após lavratura da ocorrência, foi encaminhado a uma delegacia. Preso em flagrante, teve seus bens encaminhados para perícia em Brasília e dias depois, todos estes valores simplesmente sumiram; desapareceram como num passe de mágica, sem deixar vestígio ou explicação e em pouco tempo, o caso foi esquecido e todos foram felizes para sempre.

A primeira equipe trabalhou com honradez, honestidade e empenho na elucidação do que parecia ser mais um caso de furto, roubo, seqüestro ou algo similar, mas uma outra equipe, de policiais inclusive mais graduados do que a primeira, não teve o mesmo empenho e todos pagaram com a má fama e corruptos.

Hoje no Brasil, a questão de aparelhamento, informações e salários, são os maiores problemas das polícias. Possuímos 27 polícias civis e militares; uma polícia federal; uma polícia rodoviária federal; uma polícia ferroviária federal e algumas outras polícias especiais como à polícia do legislativo e o que deveria ser uma malha simples e unificada de informações, hoje é complexa e egocêntrica. As polícias, com raras exceções, não compartilham suas informações e quando alguém é preso num estado, para se descobrir se ele já teve indiciamento, mandato de prisão ou inquérito criminal, precisa-se recorrer a um instrumento ainda vulnerável e secreto chamado INFOSEG. Isso faz das polícias, principalmente as civis, lentas, ineficazes e ridículas. Seus homens e mulheres trabalham em meio ao escuro das informações e tendo que usar certo “faro” policial para a elucidação de um crime, o que não é legal.

Dentro desta mesma esfera de informações, lembro do dia em que resolvi ir de El Paso no Texas até San Francisco na Califórnia de carro e no meio do deserto, não avistando uma viva alma há milhas, pisei fundo no acelerador do meu carro para adiantar minha viagem e do nada, eis que aparece uma viatura do Condado de Amarillo obrigando-me a encostar. Quando o policial pediu meus documentos, apresentei minha habilitação internacional e meu passaporte brasileiro. Em alguns segundos o moço já sabia de detalhes da minha estada que nem mesmo eu recordava. No meio de um deserto, onde nem as cobras sobrevivem às adversidades da natureza, meu celular não funcionava, mas o sistema integrado de informações da polícia estadunidense providenciou as respostas requeridas pelo policial, e o que é mais intrigante, as informações de um visitante de outra nação. Se fosse aqui, com certeza o policial estaria numa “saia justa”.

Ainda no tema “condições de trabalho”, as polícias brasileiras, são as que menos investem em equipamentos de ponta, se comparar com outras polícias de países emergentes. Grande parte das viaturas são ineficazes, velhas e problemáticas. O policial ostensivo ou que esteja desempenhando um trabalho investigativo precisa de conforto e agilidade para no caso de uma necessidade. Eu não falo de LUXO e sim CONFORTO. O policial militar que vive boa parte da sua jornada de trabalho dentro de um veículo, precisa de no mínimo conforto para que o estresse não tome conta da sua rotina. Imaginem uma ronda diurna no calor escaldante do verão nordestino com três policiais dentro de um Celta sem ar condicionado ou direção hidráulica? Se o motorista tiver mais de 1,70m de altura, ele já terá dificuldade de manobrá-lo ou até mesmo de entrar no carro.

O que eu acho engraçado é que o Estado providencia Luxo para quem nos rouba todos os dias e miséria para quem nos protege. Um Senador, Deputado, Vereador e outros similares podem ter carros como um Vectra CD com motorista, enquanto um policial para patrulhar e investigar necessita humilhar-se num carro velho, tendo que economizar no combustível para na ter que voltar a pé.

Agora falamos sobre equipamentos de comunicação. Os rádios utilizados pelas polícias brasileiras atendem a um padrão internacional. Hoje, a maioria já transmite em uma freqüência e recebe em outra, o que dificulta que criminosos interceptem os diálogos, mas boa parte das polícias ainda utiliza os velhos VHFs, que são vendidos pela internet por menos de 500 reais e utilizados por criminosos e outros inescrupulosos de plantão. As transmissões e recepções são feitas por meio a antenas que chamamos de repetidoras. É uma espécie de teia de aranha invisível que fica logo acima de nossas cabeças, acessível a qualquer um. Quase nenhuma polícia implantou o novo sistema de comunicação via satélite com canais codificados e criptografados, como são os celulares GSM, muito mais difíceis de serem acessados.

Muitas vezes, quando uma viatura dá um alerta para outras sobre uma “batida” policial, os bandidos já ficam sabendo em tempo real e escapolem das cenas criminosas antes da chegada da polícia. Isso é palhaçada! É vergonhoso!

No quesito “armas”, somente há cerca de 10 anos é que a PRF implantou as pistolas Ponto 40 e depois disso, várias outras polícias foram no mesmo rumo, mas ainda é comum vermos policiais usando revólveres calibre 38 de seis tiros, enquanto os bandidos usam modernas pistolas invisíveis aos sistemas de raios-X e fuzis automáticos contrabandeados do Paraguai. Os coletes a prova de balas também são vergonhosos. Eles evitam que muitos policiais sejam mortos, mas há décadas que já existem os coletes de louça, que são moldados nos corpos de seus usuários e mil vezes mais eficazes do que os atuais que são confeccionados em um trançado de fibras resistentes. Os atuais coletes são pesados e dificultam a mobilidade dos policiais, deixando-os sempre vulneráveis, principalmente aos disparos de armas com calibragem superior a 0.380 mm.

Os salários destes policiais guerreiros é uma vergonha; uma miséria ou como eles mesmos falam: “um salário de fome”. O Nordeste do Brasil é o campeão em pagar salários baixos a policial de todas as esferas (estaduais). Militares e civis, não ganham o suficiente para as suas atribuições de alto risco e até pouco tempo, na Bahia, por exemplo, as viúvas destes policiais mortos em combate, sequer recebiam pensões integrais. Depois de 1989, após uma interferência direta do Edil e Policial Civil, do Departamento de Polícia Técnica da Bahia, Professor José de Bartolomeu Ribeiro Ponde, na Constituição daquele estado, é que tudo isso começou a mudar. Na Carta Legal da Bahia, as viúvas passaram a receber salários integrais de seus maridos após batalha solitária deste policial de carreira, na Assembléia Legislativa do Estado e hoje, é lei em quase todo Brasil.

Um dos estados que mais dignificam a condição policial no Brasil é Minas Gerais. Aqui, muito embora ainda não seja o suficiente para alguém se orgulhar do dinheiro recebido, Minas está milhares de anos luz a frente de São Paulo, que possui o maior contingente do setor. O Governo do Estado está sempre modernizando a frota de viaturas, armamento e recente, após um convênio com setor privado, possibilitou que viaturas sejam alugadas ao invés de compradas. Tal medida desonera o erário e permite que soluções simples, como a troca de um pneu ou o reparo de um motor, sejam executadas como deveriam ser e não com burocracia, avais, papéis, carimbos e publicações.

Falar de polícia brasileira e não lembrar da polícia do Distrito Federal, também é incongruente. O DF é quem melhor paga aos policiais, mas lá não foi nenhuma bondade política e sim a força da Lei. Por ser a Capital Federal, os policiais distritais conseguiram equiparação com a Polícia Federal. Militares e civis ganham algo parecido com os salários pagos a PF e a proeza que eles conseguiram, através da justiça, as outras polícias tentam copiar, mas esbarram em muita burocracia, má vontade política e alegações de falta de condições de pagamento por parte dos Governadores.

A fábula chamada polícia brasileira, poderia ser municipalizada, como nos países inteligentes. O prefeito seria o chefe maior e a polícia ostensiva ficaria a cargo do município, enquanto as divisões estaduais e federais atenderiam as questões judiciárias ou de investigação apropriada. A conseqüência disso tudo seria um maior repasse para as cidades, fortalecimento da própria instituição “polícia” e maior rigor nas ações. Ainda teríamos uma queda brusca na burocracia que envolve as esferas e o trâmite de informações, pagamentos, fornecedores, etc. Mas aqui, ninguém tem interesse em minimizar problemas e sim, cria-los. Somente com muitos problemas é que se tem oportunidade de gerar mecanismos que favorecem ao suborno, corrupção, propina e tudo que conduz ao caminho do crime. É triste ver o Brasil sempre na contramão!

Somente com mais investimento nas polícias e homens sérios a segurança pública e os mecanismos criminosos que fabricam os novos marginais poderão ser combatidos, quiçá eliminados do convívio social brasileiro. Enquanto for pensado que a polícia é um mero emprego e que o Estado dá uma esmola a quem se preste ao papel de policial, jamais teremos uma corporação sólida, combativa e respeitada. Enquanto os governos gastarem mais em publicidade para a obtenção de votos ao invés de priorizar a educação, saneamento básico e segurança pública, o Brasil será eternamente um Haiti disfarçado de emergente.

Este história de “jeitinho brasileiro” só está eternizada por que pagamos uma miséria, a estes homens que se dizem policiais. Eles podem ganhar numa só hora, o que não ganham o mês inteiro e são obrigados a ver seus filhos estudando em escolas públicas imundas e comendo a escória dos supermercados, enquanto os filhos dos ladrões e políticos estudam na Suíça e comem caviar; andam com seguranças particulares e quando precisam de uma escolta, chama a quem? A polícia!

Para a corrupção policial, o remédio imediato chama-se CORREGEDORIA SÉRIA; para o problema da estruturação tecnológica, o remédio é INVESTIMENTO e para solucionar o problema de bem estar da corporação, o remédio é SALÁRIOS DIGNOS.

Ninguém se importa em divulgar os milhares de bons trabalhos executados pelas polícias do Brasil, mas quando um deles é pego participando do crime, todos tratam de divulgar e chancelar que “o policial é corrupto em sua plenitude”.

Discutem-se todos os dias sobre a violência brasileira. Fala-se dos crimes organizados, do tráfico de drogas, seqüestros, chacinas e outros distúrbios sociais, mas ninguém a nível Brasil pára para pensar e chegar a conclusão de que a nossas polícias são mal pagas, mal aparelhadas e que desta forma, não há combate ao crime que surta resultado positivo. Temos que começar a pagar melhor a estes homens; proporcionar-lhes um aparelhamento de nível elevado para somente então, passarmos a cobrar mais eficácia de seus trabalhos. Eu não estou falando de termos que pagar pela dignidade, afinal de contas, existem milhares deles que ganham mal e são honestos em todos os aspectos.

Como os direitos e garantias individuais no Brasil são cláusulas pétreas, ou seja, indiscutíveis sem a presença de outra Constituição, limitadas, teríamos que começar a nos movimentar para instituirmos outra Constituição Federal. Se conseguíssemos isso, talvez fosse o ponto de partida para uma mudança em nossos costumes e da nossa segurança pública e é por isso que o banditismo corre solto; ladrões impunes e polícia com salários de fome são os ingredientes perfeitos para o crescimento do crime.

Eu dedico esta crônica aos meus amigos, novos e antigos, das polícias brasileiras, mas em especial, a Bartolomeu Ribeiro Pondé, do Departamento de Polícia Técnica da Bahia, com mais de 20 anos de dedicação plena ao trabalho policial sem nenhuma falha ou queixa de corrupção; um dos homens mais honestos e honrados que eu conheci que precisou ser vereador, professor e perito policial; três empregos, para poder construir sua casa simples num bairro de classe média de sua cidade e possuir um carro simples financiado, mas que anda de cabeça erguida orgulhando-se de ser um servidor público e mais uma vez a Lucas Aderno Ferreira, PRF morto em combate no Rio de Janeiro.

Carlos Henrique Mascarenhas Pires

www.irregular.com.br

Fotografias: ANDRÉ SENA.