Quatro noites ao seu lado

Esta que aí vai é Marilene. Chegou com muito boa aparência. Em seguida começou a desfiar ressentimento. Teve impressão de que o tempo subiu no galho frágil e pisoteou o renovo vegetal caindo em seguida. Escuto o estalido inconfundível. Era Julião desabando da construção. Faminto diante do espelho. Revendo o azar no cristalino onde o tempo não passa. Reflexo que prestava unicamente para afagar uma figura triste e pobre. O cabelo molhado. Esperançoso. Observou os dentes estragados no espelho.

Ontem, de noite, houve tumulto na pensão. O primeiro movimento provocou irritação nos que se encontravam deitados. Depois tudo se aquietou. Retornou para a edificação do livro. Escrevia atrás das embalagens dos cigarros de Palmério. Palmério obtém os cigarros na fronteira. Recolhe os invólucros. Em troca aceitava o depósito de duas caixas fechadas em seu quarto. Caixas contendo várias marcas de fumo barato, pois sabia que Julião não fumava. Amontoadas ganharam feição de mesa. Palmério em muito contribui, dizia, conferindo as páginas do texto. O livro estava quase pronto. Pelo instinto de vender barato e sobreviver aceitava em silêncio as condições de Palmério. Seria difícil viver sem desculpas. Para Julião tratava-se da mão caridosa de um amigo. Com o passar dos anos viu que estava enganado.

Escrevia o poema inútil para exercício da síntese. Lembranças da primeira série. Gostava da escola. Da serenidade dos professores educando. Ensinando sem melindrar. Quando dava por si estava inventando histórias com a imaginação solta. Havia ócio, mistura de sabiá com cipó, asneiras, garranchos e palavras soltas: Tatu, coati, cactos. Envergonhado rasgava o papel branco.

Abriu o armário de madeira tosca para conferir a limpeza das roupas velhas. Estavam asseadas. Permaneceriam amarrotadas até exalar sabão grosso como o perfume da honestidade. O caco de espelho apontava para a fisionomia de homem alto, magro, grisalho, de olhos negros. No sorriso cortado havia apenas a bondade dos inválidos.

Hoje é o dia da entrevista. Falaria pouco. Entregaria os originais para o homem de nome Saldanha e pronto. Arriscaria um lance. Seria difícil arrumar emprego. Sabia que o seu desenho em pessoa era de má figura. Na obra e no cimento havia apresentado bons resultados até o acidente. Queda medonha com ferro de ponta enterrado na perna. Não prestou para nada durante meses. Voltou a caminhar no dia da entrevista. Mal e rengue.

Marilene retornou da rua com aquele endereço. Tratava-se de cliente da Boate Madressilva. Releu algumas páginas em voz alta. No cabaré Saldanha parecia ter lido com gosto àquilo que Julião rabiscara no quarto. Para distrair a infecção. Saldanha estava embriagado. Tropeçava nas palavras. Mesmo sem compreender o aplaudiram. Sem passagem e sem dinheiro nada quis pedir ao Tavares. Podia ter algum, mas quase nunca emprestava. Caminharia devagar até o escritório com os originais enfiados no envelope surrado. No caminho observou a leva de trabalhadores no canteiro de obras. Foi até eles. Talvez pudesse recomeçar. “Não estamos contratando!” Mostraram-lhe a placa. Sempre olhando firme para os seus passos mancos.

Continuou andando em meio ao feroz trânsito que se deslocava com grande vantagem sobre ele. Diante do prédio elegante lhe abateu um receio. Deveria prosseguir? O sol mágico do verão vestia o prédio de aspecto magistral. Seria barrado na portaria e esperava por isso. Avançou:

- Tem hora marcada?

- Sim. Aqui está o cartão.

A recepcionista demonstrou uma surpresa indignada e muda. Fez o sinal. Tratava-se da fotografia de um homem culpado pela pobreza no rosto. Com os olhos bravios ordenou que subisse. Ficava no quinto andar o ambiente estranho. Solicitou com humildade o elevador, todavia a moça nada respondeu. Decidiu seguir com os demais. Até o quarto andar se viu forçado aos olhares de gente bem vestida e perfumada. Quando Saldanha abriu a porta pediu que voltasse meses depois criando novas condições.

- Traga os originais em CD, disse, espiando com desprezo o envelope. O texto integral deveria ser enviado pela internet através de um endereço eletrônico. Balbuciou o nome “Marilene”.

- Ela disse para... Que o senhor... O nome lhe provocou um profundo mal estar. A secretaria concluiu que não ficaria com aquele envelope imundo em cima da sua mesa.

Desceu tossindo sem controle no elevador. Sentia raiva do esforço mal recompensado. Como um carnívoro havia produzido nele a desesperança de uma presa induzida... Desviava a raiva para Marilene. Depois lhe perdoava. Repelia seu conselho e retornava ao perdão. Seguia pela rua sem saber como avançar. Sentia pena de Marilene com seu ofício de esquina. Sua brandura para com Julião parecia arremedar sem querer o sinal da cruz. Sempre seminua na presença dos homens. Só Julião poderia lhe doar clemência na fantasia. Sua vida metida em dois capítulos. Em cada um deles havia a mais dedicada afeição. Quando melhorasse de vida pagaria quatro noites ao seu lado. Seria a vez da piedade compensar o fracasso. Haveria um Julião recuperado e forte.

Retornando notou que a sua alma estava sem endereço. Sem número certo. Sem nenhuma rua. Sem porta que se abrisse, quando a noite chegasse; e foi ainda mais além; viveria um período desconhecido de promessas como uma tortura lenta. Olhou como um boi a multidão. Boi calado entre haustos.