Uma crônica para Andréia
Andréia é mais uma Silva desse Brasil. Tem pouco mais de 40 anos, é negra e mora em Cidade Ocidental, a uns 50 quilômetros de Brasília. Ela é mais uma daquelas pessoas de Goiás que ajudam a fazer a capital do país (o resto do Brasil pensa que são os políticos). De segunda a sábado, ela cuida de uma idosa. A idosa tem três filhas e nenhuma está muito preocupada com a saúde da mãe. Foi Andréia, e não alguma filha, quem ficou com a idosa quando ela esteve internada no hospital. Foi Andréia, e não alguma filha, quem precisou assinar os documentos autorizando procedimentos na velha senhora. E Andréia pensa agora em sair do emprego. Ganha pouco e as filhas estão a cada dia mais exigentes – agora querem que ela faça um relatório contando tudo o que fez durante o dia.
Dois domingos por mês, Andréia pega o ônibus na Cidade Ocidental e, depois de viajar por duas horas, vem até a quitinete em que me coube morar na Asa Sul. Ela me ajuda com a limpeza e com as roupas. Sou a pessoa de menor salário entre as que dispõem desse tipo de serviço. Pelo menos, ajudo a complementar a renda de Andréia. Toda vez que a vejo, Andréia me traz notícias de guerra, de gente que sofre para continuar vivendo e que às vezes não consegue. Famílias em crise, parentes viciados, gente indo para a cadeia. O Brasil real, com o qual não estou acostumado, já que vivo a fugir do movimento da vida.
Andréia tem sete filhos, de três maridos diferentes. O mais recente desses maridos está na cadeia. Não quis me inteirar exatamente de qual acusação pesa sobre ele, mas Andréia está convicta da sua inocência. Não é o que pensa a mãe de Andréia, que não pode nem ouvir falar no homem. Mas toda quinta-feira Andréia vai visitá-lo no presídio. E o homem só chora. Às vezes tem crises de ciúme, acha que Andréia tem outro aqui fora. Andréia ri: quando iria ter tempo para arrumar outro? Todos os dias está trabalhando, depois ainda tem a casa e os meninos.
O marido se desculpa, diz que está fragilizado. Ele parece um tanto possessivo. Diz que, quando for solto, irá embora da Cidade Ocidental e levará Andréia junto. Ela, contudo, não se sente inclinada a mudar de cidade. De todo modo, isso demorará para acontecer, pois o homem ainda tem 11 anos de detenção pela frente. Na última vez que foi à cadeia, Andréia levou junto um filho de seis anos que teve com o homem. O menino estava com a boca torta – o médico disse que foi um vírus e que iria melhorar depois de 15 sessões de fisioterapia – e talvez, se visse o pai, se sentiria melhor, mas foi só choradeira...
Como se não bastasse, às vezes o homem se mete em confusões lá dentro. Andréia já chegou a receber uma ligação dizendo que era melhor o marido dela não abrir o bico. Ela não sabe o que houve, ela não sabe como pode ajudar o seu homem preso – e então é ela quem chora.
Há ainda o ex-marido – ah, os homens! Na semana passada, sumiu um irmão dele, usuário de drogas. Depois deixaram um bilhete avisando que estava morto e o local do corpo. Mas o ex-marido de Andréia não teve coragem de ir à delegacia e muito menos de reconhecer o corpo. Foi a Andréia. O homem ligou para ela perguntando se não poderia ajudar. E ela foi. Perguntaram à Andréia o que ela era do morto e ela teve que dizer: “Ex-cunhada”. Teve que reconhecer um homem que já não tinha rosto.
Andréia tem um filho de 15 anos que é visto como o mais problemático. Ele até estava frequentando igreja, parecia que ia se ajeitar, mas aí Andréia começou a achar cigarros na mochila dele. O filho mente dizendo que está guardando para alguém. Ultimamente, chega bêbado em casa. Toda semana, há uma célula da igreja na casa deles, mas Andréia receia que esse filho seja um caso perdido.
O filho mais velho tem mais de 20 anos. Embora nunca tenham conversado a respeito, Andréia acha que ele é homossexual. Ele trabalha na Feira dos Importados. Há uma filha de 18 anos que faz Sistemas de Informação e que Andréia já reservou para se casar comigo, porque faz questão de que tenha um sobrenome chique como o meu. Ela pediu para eu anotar o meu sobrenome em um papel e já aprendeu a falar. Só me chama de Fendrich.
Os filhos menores lutam karatê. Um deles pensa em desistir, porque perdeu uma luta que valia a troca de faixas. O filho menor tem três anos e Andréia o chama de “nenê”. Ultimamente, ela não tem tido muito tempo para ficar com o nenê. Ele fica a avó, a mãe de Andréia – que há uns dois meses enfartou e ainda se recupera.
Andréia precisa de uma geladeira nova, mas acha que não tem dinheiro suficiente para comprar. Lembra-se de uma prima que é funcionária pública. Tem vontade de pedir a geladeira de presente, mas tem vergonha. Ela vai me contando tudo isso enquanto trabalha. Fala alto e bastante e trabalha com energia. Às vezes se emociona, às vezes ri porque toda semana tem um drama para contar. Diz que a história dela daria um livro e pede que seja eu a escrevê-lo.
Mas, ai de mim, eu só sei fazer crônica!