À altura
Nasci em meados dos anos 1990, não me lembro se fui testemunha dos últimos comerciais de cigarros na tevê, mas o quadro pitoresco do atrito entre aqueles corpos ensaboados em disputa frenética pelo sabonete que caíra no fundo da piscina ainda reverbera na minha memória. Da minha percepção infantil, eu tinha a profunda e estranha sensação de que aqueles corpos molhados faiscavam no frêmito do atrito; a água parecia ferver, ebulir. A piscina do Gugu, aquela imoralidade fascinante, era o terror das famílias. Sobretudo das famílias súditas do moralismo fingido.
Na escola, durante um longo período, a era do ensino fundamental, fui vítima de uma implacável perseguição. Um garotinho, um grumete de sete, oito anos que não sabia defender-se das constantes investidas dos outros garotos, todos mais velhos, do ginásio. A gênese das perseguições era o gozo que os algozes sentiam ao bulir com um crentinho, um certinho incapaz de revidar à altura, de contrapor os ataques com a atitude necessária. Não. Revidar com chutes, socos, pontapés, mordidas, cusparadas e impropérios de deixar vovós moralistas escandalizadas era uma realidade que só existia como abstração -- deliciosa abstração -- na minha mente infantil.
Esta lição tomada em tenra infância revelou-me algo fundamental sobre a dinâmica das perseguições: elas só se mantêm até que o perseguido tome uma resolução. O ataque não é a melhor defesa, é a única defesa possível. Apesar da venda fácil do estereótipo dos cristãos dos primeiros séculos como os cordeirinhos facilmente conduzíveis para o fio do machado, eu não acredito nisso. Impossível. Simplesmente não posso crer que aqueles cuja religião e moral fizeram-se presentes na cultura, na política, nas artes e em todas as esferas da sociedade de maneira definitiva comportavam-se como cordeiros fracos e indefesos ante lobos ferozes. Essa imagem é de uma ingenuidade que chega às raias do ridículo.
Li que, durante os séculos do domínio muçulmano na Península Ibérica, ser cristão era sinônimo de ser guerreiro -- literalmente. A Fé precisa ser defendida, não só no campo da apologética, no calor das discussões teológico-filosóficas, mas nas situações mais ordinárias do cotidiano; na vida escolar, por exemplo.
Vida escolar, aliás, também deve preencher os verbetes dos dicionários de sinônimos como uma referência para guerreiro; um estudante é um guerreiro. Se tem Fé ou convicções que, ainda desprovidas de uma substância doutrinária, valem por ela, o estudante tem de defendê-las. Há professores e camaradas de sala ávidos por destruí-las.
Aconteceu que, de volta à sala de aula depois do recreio, um colega, garoto da minha faixa etária, interpelou-me: -- "Você é crente?". Naturalmente, o meu colega queria saber se eu professava a Fé Cristã; ele usava o substantivo Crente como sinônimo de Cristão. Cresci no Brasil, aqui as pessoas mudam os nomes das coisas sem atentarem-se para o fato patente de que as coisas não mudam. Um católico é um crente, um protestante é um crente, um judeu e, quiçá, um muçulmano também são crentes. Apesar de nem todos crerem em Jesus, o Christo, todos creem no seu Pai, o Criador. A pergunta do menino não me causou estranheza, eu percebi, de imediato, que o grumete estava prospectando mais uma oportunidade para zombar de minha Fé.
-- "Cala a boca, moleque!" --, respondi. A minha resposta desencadeou uma reação estranha no seu rosto. Sua testa franziu-se de súbito, numa contração muscular brusca; ele parecia sob o efeito de uma grande vergonha ou indignação. Talvez fosse um misto dessas duas sensações. Maior e mais robusto, o valentão ferido em seu orgulho partiu para me pegar. Foi a medida de tempo exata do meu algoz levantar-se para cair: a porrada que eu lhe desferi no meio da cara mostrou, eficientemente, o seu devido lugar. Não fui p'ra diretoria, não senhor, a professora, mulher linda que alimentou durante muito tempo a minha imaginação, também era crente.