O Fim da Rua
Passo após passo, ela se distraía com o barulho do All Star estalando sobre o cimento fumegante da calçada cinzenta. “Que horas são?”, pensou distraída enquanto observava a longínqua esquina para a qual se dirigia, numa linha reta embaçada pelo sol. Era uma longa caminhada. Os tênis velhos e manchados cadenciavam o ritmo dos pensamentos soltos, que escapuliam das tranças firmemente amarradas por um laço de fita desfiado nas pontas. A calçada quase vazia permitia que o vento refrescasse a fronte úmida de suor ao mesmo tempo em que formava redemoinhos com o lixo da sarjeta. Ela gostava do vento, e por isso não gostava das calçadas cheias de passos de gente apressada e séria do centro da cidade. Não gostava de aglomeração, e agora, mais que antes, sabia que precisava evitá-la.
Enquanto caminhava por aquele caminho alternativo, às margens do burburinho de lojas do centro da cidade, deixava os pensamentos soltos. Cruzava com poucas pessoas, que olhava furtivamente sobre a máscara estampada. Um olhar perpassava o outro, num cumprimento silencioso. Ela calava momentaneamente o murmúrio através do qual estava contando coisas a si mesma, para que o outro não conhecesse seu segredo de falar sozinha. Mas às vezes ouvia a pessoa cantarolando. Pensava no poder das máscaras de fazer com que a pessoa falasse “pra dentro”. Ao esconder os lábios, podia movê-los em diálogos ou canções que só interessavam a si mesma. Aparentemente outros também descobriram essa função.
Era tempo de máscaras reais, de tecidos e estampas, e ela rapidamente se adaptou. Primeiro, acertou o volume de seus diálogos ensimesmados para que percorressem com segurança o caminho dos elásticos da máscara, presos atrás da orelha. Em seguida, elaborou uma espécie de dicionário de máscaras para pré-julgar as pessoas pelas quais passava. Mais que a roupa, mais que os sapatos, mais que os cabelos, ela observava o tecido com o qual a pessoa cobria o rosto e estabelecia, secretamente, um juízo de valor: os sem-máscaras, os nariz-de-fora e os máscara-no-queixo ocupavam a parte mais baixa da pirâmide social no mundo mascarado das ruas. Logo acima estavam as máscaras-de-time-de-futebol. As máscaras-de-renda, ela pensava, eram madames ou habitantes das varandas gourmet. E assim sucessivamente.
A caminhada solitária e as argumentações consigo mesma acabaram por criar outras teorias que só tinham sentido naquele mundo em linha reta da calçada empoeirada sob o sol escaldante. Criava expectativas sobre como seria seu dia de acordo com os mascarados que passassem por ela. Muitos sem-máscaras, mal sinal. Muitas máscaras-de-renda, o dia exigiria paciência. Muitas máscaras branco-ou-preto-padrão, dia normal e sem novidades. Máscaras-estampadas, dia bom.
Também passou a imaginar que, se acompanhasse o ritmo dos tênis na calçada, se cansaria menos. Caminhava olhando pra baixo: gostava de ver um pé após o outro, levando o resto do corpo com laborioso empenho. Sorria pra si mesma, sentindo-se livre, fantasiando um caminho menos cinzento e entediante que aquela calçada tão familiar. “Estou atravessando o deserto”, ou “estou numa trilha florida da Europa”, ou até mesmo “estou caminhando em outro planeta”. Olhava pra frente, pra reta inerte que parecia dançar suavemente com a evaporação poeirenta, e a esquina ia se aproximando. “Sim, eu me canso menos, está comprovado”, concluiu, como que passando um relatório pra si mesma sobre o experimento realizado. E ouvia, de si mesma, orgulhosa: “Eu sabia! Minha teoria estava correta!”.
A poucos passos da esquina, sem perceber, largava a história pela metade, esquecia as flores da trilha europeia, o planeta inexplorado e o deserto misterioso, o ritmo dos tênis no concreto. Acabava distraída, cantarolando uma canção qualquer. O concreto se apossava de tudo no fim da rua, ao dobrar a esquina.