Ignorância ou perversidade?
Nove horas da manhã, indicava o relógio branco com ponteiros e números pretos que fica no alto, no parapeito da galeria da igreja. Não sei dizer o motivo, mas estava absorto olhando para aquele relógio. “Os irmãos já podem seguir para as suas classes”, disse o superintendente da EBD (Escola Bíblica Dominical), indicando que a parte introdutória dos trabalhos estava encerrada e os professores deveriam iniciar suas aulas, cada um ao grupo a que lecionava.
O tema, naquele dia, era sobre algumas ações reprováveis realizadas ou permitidas pelo rei Acabe (um dos reis de Israel, cuja história está registrada nos Livros dos Reis, Antigo Testamento). O roteiro, rapidamente, levou o professor da classe dos irmãos – o pastor da igreja – ao episódio da “vinha de Nabote”.
Trata-se de um simples homem, possuidor, por herança familiar, de uma vinha situada próximo ao palácio, a qual tornando-se objeto de desejo do rei, foi-lhe negada a venda pelo proprietário que alegava não estar disposto a desfazer-se dela, visto ser esta uma herança de seus pais. Por tal razão, o rei entristeceu-se muito, o que vendo sua mulher, Jezabel, e sabendo o por quê do estado do esposo, levou Nabote à morte por meio de uma cilada e deu a vinha ao rei.
Em meio a algumas expressões ditas pelo professor, a meu ver, desconexas, surgiu a “Isso aconteceu porque Acabe era um ‘bananão’ dominado pela mulher”. Aquilo me interessou. Percebi, também, que um ruído surdo correu entre os irmãos. O pastor assumia um tom grave, “Há muitos homens, ainda hoje em dia, que aceitam ser dominados pelas mulheres, irmãos!” – prosseguia – “Tudo bem, os maridos devem conversar com as esposas sobre o que vão fazer, mas a palavra final tem de ser do homem!” – acrescentou.
A essa altura, trocavam-se, de todos e para com todos, comentários curtos em confirmação e apoio às declarações do pastor. A maioria daquelas frases, fundindo-se umas às outras, perdiam-se. Um dos irmãos, levantando um pouco mais a voz, disse: “Tem homem que deixa de ir a algum lugar ou fazer alguma coisa porque a mulher o impede. Pode uma coisa dessas?!”.
Sem ceder tempo para a “digestão” do comentário anterior, outro irmão emendou: “Pior, é quando a mulher ganha mais que o marido... ela quer mandar, mesmo! Lá em casa, ela pode ganhar um milhão... não tem essa de querer... vai te catar!”.
A aula ganhou um “dinamismo” impensável em seu início. Podia se ouvir risadas soltas. Todos estavam, de fato, envolvidos e tudo fluía em harmonia. Havia total cumplicidade entre todos. Comecei a me perguntar se seriam ignorantes ou perversos...
Pedi licença e fui tomar um pouco de água. Entre os pequenos goles, recordava algumas notícias sobre violência contra mulheres e feminicídios. Viajei um pouco lembrando de minhas leituras sobre as negações de direitos e/ou opressões sofridas pelas mulheres ao longo da história... Veio a mim a imagem de minha única filha. Lembrei-me de como a ensino a ser forte e capaz de se defender... “O que estou fazendo aqui?!” – pensei.
Saí... enxergando, mais nitidamente, as barreiras que estão postas nessa curva da vida.