O Beijo em Público
Se o trocador tivesse tirado você do ônibus por causa de um revólver ou uma bomba-relógio, eu estaria contra você. Mas por causa do beijo...
O beijo em público é comum nas grandes capitais da Europa. Mesmo entre homens, sim, pode crer. Você se lembra da última Copa do Mundo? Os craques europeus, barbados e machões, gol após gol, friccionavam-se nos lábios sem qualquer constrangimento, perante milhões de testemunhas nos aparelhos de tevê. Nem por isso as donzelas se tornaram menos puras e subiu mais rubor às já tão ruborizadas faces de pudibundos senhores e senhoras.
Aliás, o beijo em público vem sendo considerado, de uns tempos para cá, de grande beleza estética. Vem sendo filmado, fotografado, videoteipizado, gravado. Gravado, sim. É que descobriram, uns cientistas congoleses, que o barulho do beijo pode ser usado com sucesso no tratamento de determinadas afecções auditivas. E o senhor foi retirado do ônibus por causa do beijo...
Não, é impossível acreditar. E um beijo leve, puro, macio como rolha de cortiça, rápido como voo de birosca, tão discreto que usava sandálias de teia de aranha, um beijo consciente e maduro... Não, é impossível acreditar! Que mesmo fosse um beijo sensual, erótico, violento e eterno como as pirâmides do Egito. Que fosse. Ainda assim eu não faria o que fizeram com você. Já pensou que beleza seria o mundo se todo governante começasse a beijar em vez de pensar em arma atômica? Isso poderia aumentar a poluição sonora e derivadas, mas, poluição por poluição, prefiro essa.
E o pior é que você nem foi ouvido, nem teve chance de se defender, de dizer nada. Alguém lançou a acusação no espaço, o trocador a aceitou e não pestanejou em usar a autoridade divina de que foi investido. E o alguém acusador, segundo dizem, tem tanta aversão por contatos corporais de sexos diferentes que concebeu treze vezes pelo revolucionário método do telégrafo sem fio. Não, é impossível acreditar que certas pessoas vivam na mesma época de Barnard, Armstrong, Collins e Aldrin, Braun, todo mundo olhando para as estrelas e essas pessoas vidradas no banco traseiro de transportes coletivos.
Perdoai-os. Perdoai-os, porque não sabem o que perdem. Num grila não. Nós vamos lançar a campanha da liberação do beijo em público, inclusive para trocadores e motoristas, para que não haja problemas com a iluminação nos veículos, que, em certos instantes, principalmente à noite, torna-se demasiado importuna. Num grila não. Ela é joia, é jovem, consciente e é mulher. E você é um cara até meio genial, tem umas poesiazinhas, contos, que a gente pode mesmo publicar na revista “O Bicho!!!”, de Belo Horizonte, conhece?
Mas se você quer ser aplaudido desde já é só começar a sequestrar veículos por aí, fazer tiroteios em praça pública. Ataque alojamento de atletas, inscreva-se na guerra que, dizem, vai acabar depois de tanta maratona. Há sempre lugar para essas coisas. Você será respeitado e apontado nas ruas. A violência é o pão nosso do dia-a-dia. Num grila não.
(Publicada no jornal "Oi, Bicho", Belo Horizonte, início dos anos 70)