Extraordinário
A ficha ainda não caiu. Ia escrever a respeito ontem, mas, como dizem, "ia" é freio de burro - e eu fiquei meio, senão todo, embasbacado com a cena que vi. Se eu mesmo não a tivesse visto com meus próprios olhos, duvidaria de sua existência.
União é uma cidade pequena em população, mas grande em acontecimentos. Não temos metrô, cinema, tobogã. É verdade. Mas temos uma quadra municipal cimentada, muitas e lucrativas igrejas, dezoito postos de gasolina, meia dúzia de crianças infelizes e um caminhão do lixo, que passa à porta de casa quase sempre atrasado. Em meio a toda essa idiossincrasia municipal, eu vi, e custou-me acreditar.
As ruas de União sempre foram estreitas; as calçadas esburacadas; a meia dúzia de crianças, todas infelizes. Mas desde quando nossos setentões soltam pipa? Desde quando se tornaram partidários desse esporte que, de acordo com a ONU, é devotado aos garotões?
A ficha ainda não caiu, e me alegra acreditar. Sempre achei que nossos setentões fossem adeptos de práticas esportivas menos laborais, a exemplo da do jogo de damas, dominó, pilates. Sem perceber, fui educado para o preconceito, para interpretar a vida alheia conforme o mandamento da conveniência social e a classificar os objetos físicos e monetários de acordo com a orientação da sociedade patriarcal.
Daí que, em uma incursão ao redor do centro de União, de repentemente, vejo esse setentão com as mão na massa, concentrado, leve e airoso, dando linha a sua pipa em meio a um céu escuro e uma televisão ligada:
— Tio, que é que o senhor tá fazendo? — perguntei-lhe, muito surpreso.
— Você não tá vendo não. Soltando pipa — me respondeu ele, sorrindo.
Eu lhe retribui o sorriso e lhe desejei excelente pescaria. Em seguida, encerrei a incursão e me encolhi entre as estreitas ruas de União. É assim cada dia de sobrevida: um desaprendizado constante. Nesse particular, meu livro favorito de lógica matemática não tem sido tão instrutivo quanto à lógica das ruas, a das calçadas, a da meia dúzia de crianças infelizes, a dos velhos setentões de União dos Palmares. Porque todo dia é dia de desconstruir-me.