CRUZ E SOUSA E NESTOR TANGERINI
TIRANDO SONETOS DAS PEDRAS
Nelson Marzullo Tangerini
Tenho, diante de mim, dois poetas em momentos distintos de profunda meditação, quando tiveram de enfrentar a doença, mal do século XIX, ou um grave acidente de ônibus.
Estou falando de Cruz e Sousa, da escola simbolista, e Nestor Tangerini, da 2ª. geração do Parnasianismo, movimento ainda pouco estudado.
O primeiro, em sua casa, no bairro do Encantado, no subúrbio da Cidade do Rio de Janeiro, já minado pela tuberculose, que o mataria logo, na flor da idade, consegue escrever um soneto decassílabo sobre a febre que a doença lhe causava, mergulhando-o no mais horrendo delírio.
Vejamos estes versos de “Perante a morte”, de seu livro póstumo, Últimos Sonetos, escrito todo ele na casa da Rua Teixeira Pinto, hoje Rua Cruz e Sousa, e publicado por seu amigo Nestor Victor:
“Perante a morte empalidece e treme,
Treme perante a morte, empalidece.
Coroa-te de lágrimas, esquece
O Mal cruel que nos abismos geme.
Ah! Longe, o Inferno que flameja e freme,
Longe a Paixão que só no horror floresce....
A alma precisa de silêncio e prece,
Pois na prece e silêncio nada teme.
Silêncio e prece no fatal segredo,
Perante o pasmo do sombrio medo,
Da morte e os seus aspectos reverentes...
Silêncio para o desespero insano,
O furor gigantesco e sobre-humano,
A dor sinistra de ranger os dentes”.
João da Cruz e Sousa nasceu a 24 de novembro de 1861, na cidade de Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, em SC. Também chamado de Dante Negro, o poeta era filho de um casal de escravizados alforriados: Guilherme da Cruz e Carolina Eva da Conceição. Recebeu esmera educação do Marechal Guilherme Xavier de Sousa e esposa, ex-proprietários de seus pais. Faleceu em Sítio, atual Antônio Carlos, MG, a 19 de março de 1898, para onde fora, na esperança de curar-se da tuberculose. Sua vida difícil e trágica ainda hoje é lembrada por um grupo de estudiosos, como é o caso do escritor Tom Farias (Uelinton Farias Alves).
Sua casa, no Encantado, após muitos protestos, foi demolida, ainda que um grupo de seletos abnegados tentassem tombar o imóvel para transformá-lo em biblioteca pública ou num centro cultural.
O segundo poeta a ser analisado é Nestor Tangerini, natural de Piracicaba, SP, onde nasceu, a 23 de julho de 1895. No Largo de Benfica, subúrbio do Rio de Janeiro, Tangerini é vítima de um grave acidente de ônibus, quando viajava de Olaria, onde morava, para o trabalho no antigo DCT, Departamento de Correios e Telégrafos, no centro da cidade.
No hospital, já com o braço esquerdo amputado, escreve o lindo soneto, também um decassílabo, “À Dinah”, dedicado à sua esposa e a Nirton, seu primeiro filho, que vinha ao mundo em meio a um momento doloroso para o casal.
Vejamos o soneto:
“À DINAH
Nasceu Nirtinho, o príncipe encantado,
O filhinho de nossa adoração,
O herdeiro de um paupérrimo reinado
Que tu enriqueceste de ilusão.
Ante meu braço esquerdo decepado,
Com que te apertei muito ao coração,
Todo o teu sonho viste derrocado...
Mas Nirtinho lhe deu ressurreição!
Dizem que, de tão lindo, não tem par,
E, louco por falar, faz grande alarme.
E eu como anseio de o sentir falar!...
Não para ouvir papai, que é tão comum,
Mas, vivinho e curioso, perguntar-me
Por que ele tem dois braços, e eu só um.... “ (*)
Assim o jornal O Botafogo, p. 3, Rio, 2/3/1940, noticiou o acidente com o escritor:
“Nestor Tangerini, consagrado escritor e filólogo brasileiro,
encontrando-se recolhido a um leito do Hospital de Pronto Socorro,
em virtude do desastre de ônibus ocorrido a 20 de janeiro último, do que lhe adveio a perda do braço esquerdo, impossibilitado de ver seu filhinho Nirtinho, nascido no dia 11 de fevereiro p.p., escreveu, no próprio leito de dor, este lindo soneto, que dirigiu à sua esposa.”
Fernando Pessoa, modernista, diria que o poeta é um fingidor, e que finge ser dor a dor que deveras sente. Transformar a dor em arte é, certamente, o ponto mais alto do templo da poesia. E, nesses casos, Cruz e Sousa e Nestor Tangerini construíram esse edifício trabalhado arduamente, onde só os “eleitos” podem registrar a sua existência atribulada e bela.
...
Essa crônica é dedicada a meu pai, Nestor Tambourindeguy Tangerini.
(*) Soneto escrito na Enfermaria Álvaro Ramos, Pronto Socorro, no dia 14/2/1940, depois do acidente.