PANDEMIA

SOB A TÚNICA DAS ÁRVORES

Nelson Marzullo Tangerini

Encontrei um diário sob uma árvore. E comecei a ler sobre mim. Imediatamente, você, leitor, amante da boa música, dirá que estou plagiando a canção Diary, do conjunto Bread, escrita por David Gates, integrante da banda. Mas, se for um literato, poderá achar que estou plagiando, também, o poeta mineiro Murilo Mendes, natural de Juiz de Fora.

Certamente, canção e poesia me vêm à mente, neste momento, quando trato das “flores dos jardins da nossa casa”.

Em meio a uma grande pandemia, que dizima inúmeras pessoas no Planeta, dedico-me a este espaço retangular de minha casa, fragmento do planeta. Hora de plantar os frutos que alimentarão minhas esperanças. Plantar, para mim, é como escrever ou fotografar. Dentro do nosso "quadrado", escrevo e leio livros que alimentam o meu cérebro. Nelson Maia Schocair, dedilhando seu violão, diria: “Sento no chão e faço música”.

Plantas ornamentais, flores, mamoeiros, abacateiros, coqueiro, pitangueiras, goiabeiras, sabiás, bem-te-vis, sanhaços, papa-formigas alimentam o isolamento do escritor; fertilizam a terra de meus textos.

Da porta da casa avisto a Serra dos Pretos Forros, a Floresta da Tijuca, as pedras Tijuca Maior e a Tijuca Menor, chamada por nós de Pedra 7.

Confinados em nosso mundo, Verônica e eu pensamos no mundo exterior, em nossos passeios que ficaram como histórias passadas, escritas num caderno guardado nos armários de nossas mentes.

Saraus de música e poesia, reuniões familiares, padaria da Penha, almoço na CADEG, forró em São Cristóvão, Mercadão de Madureira, tudo isso se transforma em histórias remotas. E, por isso, nossas fotografias nos consolam: imagens congeladas para nossas futuras gerações. Ou futuras civilizações. Porque a covid, faminta, não tem dó de ninguém e promete ceifar quantas vidas puder.

O cenário é apocalíptico, embora tenhamos uma crença infinita na ciência e nesses cientistas que tentam salvar a civilização do abismo.

A saudade do ruído da rua é latente: carros, ônibus, trens, metrô, o contato com os seres humanos que por nós passam com suas fisionomias alegres, tristes, preocupadas, enfezadas. A vida pulsando e impulsionando o trabalho diário.

Todo o barulho do mundo e desta cidade grande e louca é agora uma apresentação na tela sobre a estante ou afixada na parede da sala: telejornais vomitando notícias da CPI, dos terremotos, das enchentes, dos desabamentos, do desemprego, de novos números de mortes pela covid, do assassinato de um presidente, dos ataques terroristas, dos desabamentos, das chacinas na comunidade - onde os negros mortos indiscriminadamente por milícias ou pela polícia -, da homofobia, das declarações racistas, do desmatamento, das invasões a terras indígenas, das grosserias do presidente e do feminicídio. Se essa vitrine de notícias macabras nos perturbam, sentamos no chão e fazemos música. Ou escrevemos. Ou pegamos um livro na estante para ler.

Vida burguesa! Certamente, dirão que vivo num palácio de cristal, nos alpes mais elevados do Planeta Terra, escutando tiroteios em morros distantes. Viajo pela Turquia com Pamuk. Ou para a Albânia de Kadaré. Ou para a Minas Gerais de Carlos Drummond de Andrade.

Sob as árvores, o “Menino do dedo verde” lê o seu diário: o diário de um homem que planta vidas verdes, verdejantes esperanças para um mundo descrente de que haverá futuro. “Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração”. Esse menino crê, ainda, que um novo mundo é possível.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 09/07/2021
Código do texto: T7296013
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.