Médica de Família
MÉDICA DE FAMÍLIA
- Dra., a senhora veio atender ou fazer palestra? Preciso dessa receita e o horário do meu ônibus é às 8.
- Dra., Meus dentes estão se separando. Senti uma fraqueza que tenho tido que correr atrás das minhas pernas. Tenho um vento dentro da minha cabeça desde pequena e nada tira minha dor nas costas- algumas das queixas durante as consultas.
- Quero um “checapigeral”!
- Vim consultar, mas quero que a senhora renove receita do meu filho e atualize a receita da minha mãe. Meu mais novinho aqui tá cheio de verme. Faz uma receitinha para ele também.
Com um agendamento de 16 pacientes por turno, com 4 encaixes, além desta demanda social extra com a necessidade de atendimento em progressão geométrica me deixava muito estressada e os coordenadores não entendiam que em 12 minutos eu não conseguiria cobrir toda solicitação nem me restaria tempo de ter olhar acolhedor que seria imprescindível para abrangência do meu perfil como homeopata que sou e a dinâmica do adoecimento que tanto fazia sofrer a esse povo. Mandei um e-mail para o Ministério da Saúde que respondeu ser preconizado 8 (oito) minutos para cada paciente. O médico tinha que chegar direto para o atendimento pois senão este tempo seria mais reduzido ainda.
Tenho tido que ser alopata, mas as pessoas fazem melhoras como se o remédio tivesse uma benção homeopatizada. Adoram remédio de graça do posto. Adoram o Posto. Têm numa carência imensa dentro do que vivem. Devem me achar bem diferente, mas o ideal pois sou o seu possível.
Eu sofro muita pressão pela produtividade preconizada de 500 pacientes ao mês. Faço visitas domiciliares e invento programas comunitários, campanhas educativas e dias comemorativos. Preciso compreender as suas demandas sociais, representações junto as instituições públicas de benefícios e pensões para complementar suas rendas familiares. Na Equipe da Saúde de Família não tem psicólogo nem Assistente Social.
Sempre sou examinada em minhas condutas por pressão da população sofredora, sempre doente e que exige atendimento imediatista e superficial para um alívio existencial. Mesmo que a gente explique ali não é pronto atendimento, não adianta, eles exigem uma prescrição sintomática, nebulização e curativo.
Querem ser consultados diariamente. Querem ir ao posto comer biscoito e tomar café, serem acolhidos, refrescar-se um pouco, bater papo entre eles e a equipe de saúde, como se ali fosse a Família do Posto.
Existe pressão política de um lado e popular, de outro através das associações do bairro. A Secretaria de Saúde e o Prefeito monitoram a gente pela Ouvidoria e a equipe fica entre a cruz e a caldeirinha todo o tempo.
É uma loucura, tem hora. Puericultura, Pediatria, Hipertensão, diabetes, Ambulatório preventivos, pré-natal, urgências, produção, produção e produção.
A enfermeira, auxiliares de serviços gerais, técnicas, agentes comunitários e recepcionistas têm que ficar me dando tudo nas mãos, senão eu choro. Fazem a triagem, pesagem, atualização dos prontuários com resultados laboratoriais grampeados para adiantar meu atendimento apressado garantindo a cobertura.
As visitas domiciliares me encantam. Respirar fundo indo lá para fora do Módulo, que só tem uma porta na edificação básica da UBS. Eu gostava de pegar a bicicleta com a equipe e circular no bairro vendo as árvores, o jeito do povo, seus varais de roupas e correria das crianças e criações.
Levo para estas visitas meu pozinho de pirlimpimpim e pulverizo dentro de seus corações, leitos e condições.
Deixo minha história pessoal silenciada durante o dia. Pareço estar num filme, só que real, com cheiro de fogão a lenha, suor, falta de sorte, de dente, com barulhos ora de hinos crentes, sinos, louvores e tambores. Mesmo sem um diretor artístico, sem uma estética romântica, mas com muito realismo temos os extremos de violência ali como do enteado baleando o companheiro de sua mãe e a delicadeza inocente da jovem de 19 anos em sua quarta gestação com o 5º filho a caminho e nenhum pai para sustentá-los e que quis engravidar pois desejava ter uma menina, seu grande sonho de pequena quando nunca tivera uma boneca só para ela.
Sarna, piolho e tuberculose. Já até fizeram esta música sobre a sequência de adoecimentos comunitários, mas para entender este conteúdo só trabalhando num PSF.
Numa rotina que exclui os métodos programados de qualidade integral e modelos coletivos da atenção básica de saúde, vamos seguindo acreditando na estratégia pública, no SUS e acolhimento necessários aos “clientes”, como os gestores teimam em chamar os usuários do sistema.