EU-OUTRO-EU

Ferir-te a alma foi o ato mais revolucionário que eu poderia ter feito. Em momento algum imaginaria estar contente pela morte de sua etérea parte, porém, foi preciso transformar-me em assassino para voltar a viver. Sim, certamente estaria me perguntando como foi possível cometer esse crime imperdoável. Hoje não mais. Libertar-se jamais terá preço. A suavidade estava consumindo meu espírito, e, por algum momento, resolvi agir pela auto defesa. Viver é belo, denso, singular, indispensável, e nesse caso, escolhi viver. Nem é tão impressionante assim, eu diria, pois, embora seja conjunto de predicados romanceados, somente rebela as mesmas pulsões que há noutros seres vivos.

Eu era Outro sem entender nada de mim mesmo. Evitar compreender como se espalhou o pior de mim nas mazelas da estrada foi o confronto dos confrontos. Acredito ter sido uma guerra sem fim, e agora, em menor grau, ocorre nas profundezas intransponíveis desse habitante atual. Seres complementam vaidades sem percepções reais de si mesmos, entrelaçando o ruim da corrente aprisionadora de nossas cortinas de fumaça, sombreadas nestes moldes costumeiros da inocência. Quando a costura dilacera centímetros da carne, o destino é a dor imensurável desregrada das relações vilipendiosas que desassossegam quereres. Assim, estamos completos mortos, não havendo brilhos nem esperanças a agarrar no meio do naufrágio.

Temia não haver destinos, e, para minha desgraça, realmente não há. Ousamos criar fábulas que enriqueçam nossas necessidades natas de crer no bem, mas, para o nosso desgosto, nem o bem nem o mal são obras divinas, aliás, são constatações dos atos humanos. E quando cometi o crime eu sabia bem a quem poderia ferir indiretamente. Feri muitos, e claro, entendi melhor o desejo canibal pela consumação arbitrária das volúpias distantes entre corpos. Pertencer a si mesmo nunca foi suave. Quem espera brisa leve e calma desconhece o peso da própria vida.

Por fim, entendi melhor, mesmo com as mãos manchadas de sangue, a quem eu pertenço, de onde eu vim, como consegui estabelecer contato direto ao Outro habitante dessa história real. Vem de mim o apreço profundo pelas continuações das boas conversas, dos bons debates, e sim, o Eu ter morrido não me fez menos Eu, cuja emotividade é baseada especificamente na escritura inquieta de meus dedos. Matar-te-ei novamente, caso precise. Sem remorso. Sejamos sinceros: Morremos diariamente conosco, e o que nos diferenciará dos outros, é, o quanto estaremos dispostos a doar de nós para o sacrifício de uma nova vida.

Hivton Almeida
Enviado por Hivton Almeida em 05/07/2021
Código do texto: T7292934
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