O AÇORITA PESCADOR
"Por este Passo, em águas rasas, transitaram bichos e homens, todos andejos, sem marca e sinal. Eram índios, negros, brancos, todos fazedores de pátria. O que permaneceu como raiz foi o pescador, que fez família e matou a fome com o que vem das águas.". Joaquim Moncks, poeta e escritor.
(Inscrição em placa metálica integrativa do conjunto estatuário inaugurado em 29/06/2020, com que a municipalidade homenageia os pescadores ancestrais, os quais deram origem ao Passo de Torres)
É exemplar de rara beleza a abordagem jornalística tecida por Jaime Batista, historiador e gestor de cultura da Secretaria Municipal de Educação e Cultura do município de Passo de Torres, sul de Santa Catarina com a qual saúda o transcurso do primeiro ano da inauguração da peça artística erigida em praça pública, localizada no entorno da praça central do Passo, orla do Rio Mampituba, o “rio dos bagres” na linguagem dos índios aqui arrinconados, primitivos habitantes, pioneiros usuários dos vargedos costeiros às margens ribeirinhas. Estou honrado e grato por haverem as autoridades municipais avalizado para a posteridade as ideias, ao acatar com ênfase o conteúdo formal de minha humilde e despretensiosa croniqueta, na qual existem alguns traços genéricos de historicidade. Sim, os habitantes da região, em particular os pescadores, têm muito a refletir sobre a vida de seus antepassados proveniente dos Arquipélago dos Açores, que por estas bandas litorâneas aportaram há mais de quatro séculos. O qualificativo “açorita” é uma variante linguística de “açoriano”: um locativo, adjetivo gentílico que designa o habitante e/ou aquele que é natural ou proveniente do arquipélago dos Açores, território integrante da lusa pátria-mãe. Vale a analogia ao que a mídia televisiva tem proposto nas pautas jornalísticas da atualidade, no que tange ou se refere à negritude e/ou outras questões de gênero: assumir-se, em toda a costa litorânea de SC e do RS, como descendente do “Açorita Pescador” é uma "fala de orgulho". É de se ressaltar e dar parabéns à municipalidade por ter o historiador Jaime Batista seu gestor cultural, pelo talento e pela permanente fidedignidade às raízes históricas dos bicuíras, aquele que são naturais do litoral, os que nasceram na praia. Enfim, este é o designativo do habitante da costa marítima e das lagoas interiores. Toda uma humana fauna sob a materializada estatuária eclesial e as bênçãos do (santo) espírito de Pedro, o pescador edificador da Igreja, pastor terreno de almas, ao tempo de Jesus, o Cristo sempre vivo. Afinal, todas as terras por aqui faziam parte do litoral norte do chamado “Continente de São Pedro”. E este santo da igreja apostólica romana é o padroeiro do Passo de Torres e adquiriu destaque na matriz da localidade. Nós, os passo-torrentes natos e os adotivos (como eu) sabemos da imensa gama de vida que provém das águas e de que é sempre tempo de louvar a ancestralidade, porque povos sem tradição, sem folclore, sem suas ingênuas crendices e mitos, é povo sem raízes. Acabam perdendo os seus mais íntimos valores e o orgulho de sua ancestralidade. Sofrem efeitos danosos e sequelas, esvaindo-se a autoestima com visíveis e apreciáveis danos às suas humanas potencialidades. Tanto no plano material, para a efetiva sobrevivência, bem como no espiritual, de que são exemplos a resistência aos modismos e às sequenciais ações da deletéria globalização, em detrimento dos localismos e regionalismos, constantes vivificadores da anuviada autoestima popular. O que vem demarcado por interesses e também pelo selo da globalidade e/ou universalidade, estandartes régios brandidos pelos povos ricos, nacionais e transnacionais, pulverizam o singelo legado fortalecedor dos valores de comunidade. No caso presente, o dos habitantes ribeirinhos, o foco popular se concentra no firme propósito de prover sua sobrevivência e a de sua família, com atenção e afeto, tudo num clima de simplicidade e muito trabalho para vencer os desafios e poder sobreviver focado nos valores pertinentes à dignidade humana e autoestima. As mulheres dos homens da pesca que o digam, quando os seus parceiros varam o encapelado alto mar – sempre destemidos – entregues à procela, aos ventos, sol e chuvas, à cata do pescado, o alimento que mata a sua e a fome de muitos homens, mulheres e filhos e também a de seus animais domésticos, neste sul do mundo americano.
MONCKS, Joaquim. A MAÇÃ NA CRUZ. Obra inédita, 2021.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/7290324