Céu azul e arco-íris
“I see trees of green” foi o que pensei enquanto estava sentado na mesa onde trabalho, no meu quarto, imerso entre agendas e planilhas, não era o momento para me distrair, mas continuou: “red roses too…”, não, definitivamente não era o momento, minha agenda dizia que aquele era o momento de estudar inglês, mas ironicamente, aquilo era inglês e quis continuar: “i see them bloom, for me and you”, e desse ponto em diante, seguiu-se o irreversível: “and i think to myself - what a wonderful world”. Pronto, estava feito, minha mente procrastinadora me conduziu à uma das mais belas canções da vida. What a wonderful world é uma dessas músicas que me traz a mesma sensação de céu aberto que Caetano dizia sentir ao ouvir Hey Jude na cadeia, e apesar de gostar muito da música, sempre fui mais dado à versão cantada pelo Tiago Iorc do que à original. Mas naquele dia frio, a voz que iniciou a canção na minha mente não foi a do Tiago, mas a do próprio Louis Armstrong.
Eu poderia pensar na provável experiência mediúnica que vivi, mas tenho certeza que se houver um céu, Louis estará muito ocupado no setor de artistas negros puxando um bom som com Ella Fitzgerald, Nina Simone e Cartola. Preferi me ocupar, então, pensando no porquê alguém se põe a cantar em exclamação que a vida é linda.
Decidi pesquisar, a composição é de 1967 e Louis não foi um dos compositores, falando neles, aliás, eram brancos. Essa informação foi muito importante para mim, pois em 1967, ano da composição, o cenário político-racial nos EUA era terrível, Malcolm X, forte voz pelos direitos dos negros, havia sido assassinado dois anos antes, no verão de 1965, igrejas Batistas negras ainda explodiam em ataques supremacistas brancos e a truculência policial ainda matava anualmente milhares de negros, além de por, em manifestações pacíficas, como as de Selma, dezenas na cadeia, além de ferir centenas, para além disso, a Guerra Fria estava em seu máximo fervor na face da Guerra do Vietnã.
Por que cantar que a vida é boa? Por que falar de amigos que apertam as mãos e inconscientemente dizem que se amam, quando a realidade apresentava grupos sociais se matando? Por que falar dos bebês que cresciam saudáveis e aprendendo, quando a realidade era a de crianças que morriam em função de uma falsa supremacia? Por que falar do arco-íris e do céu azul, quando a realidade era a de bombas cruzando o céu? Por que? “Por que, Louis?”; me questionei.
Pois se Louis foi bom o suficiente para sair da seção negra do céu para sussurrar a música em meus ouvidos, novamente ele o foi: “eu vejo árvores verdes, e rosas também, eu vejo o florescer para mim e para você. e penso comigo - que mundo maravilhoso”. Louis não via, mas enxergava tudo aquilo, quis enxergar até que se tornasse uma realidade. Não via árvores, mas as enxergava, não via os amigos, mas os enxergava, não via os bebês, mas os enxergava, não via o céu, o arco-íris e, principalmente, o florescer, mas os enxergava.
Enxergava até que fosse uma realidade.
Louis não cantou pelo que via, mas pelo que enxergava em um futuro melhor, que não poderia ser para ele, mas que seria para aqueles que viessem depois e de fato pudessem ver os esforços que ele fazia por uma sociedade que fosse mais justa para o seu povo. Louis enxergou além de sua realidade, ele viu beleza no futuro, ele viu paz, amor, compreensão e justiça.
Pelos mais de 500 mil que se foram no meu país, e pelas mais de 500 mil famílias, amigos e amores que vivem esse momento de dor, eu faço como Louis:
Eu vejo árvores verdes
E rosas vermelhas também
Eu vejo o florescer para mim e para você
E eu penso comigo: Que mundo maravilhoso
Eu vejo o céu azul e nuvens brancas
O brilho abençoado do dia e a escuridão sagrada da noite
E eu penso comigo: Que mundo maravilhoso
Não é, não está e não vejo ser maravilhoso. Mas será, há de ser, escolho enxergar.
Obrigado, Louis.