SEM CHÃO...NUM BARQUINHO SOBRE AS ÁGUAS DO TEMPO
Era início dos anos oitenta.
Obviamente que a data do fato guardado, o que me saiu de dentro das páginas da vida, não estava na minha memória e foi preciso resgatá-la momento em que, em plena pandemia, me vi com uma obra de construção dentro de casa, pela soltura patológica dum piso frio.
Tudo , de repente, ficou de pernas para os ares...
Há épocas em que fazemos faxinas na marra... não apenas de coisas que guardamos por fora mas também das lembranças de dentro.
Dizem que é preciso, no momento certo, também arrumar nossas gavetas interiores...
E foi assim que literalmente sem chão viável... eu encontrei uma fotografia com a qual fui presenteada e que me fez navegar, a literalmente me ancorar no tempo.
No caso, fiz uma instantânea faxina reversa...
Então me lembrei dele.
Tratava-se dum colega de faculdade, um garoto tímido, muito "na dele" que vez ou outra trocava algumas palavras monossilábicas comigo.
Era de estatura miúda, magro, cabelos negros, usava um "blue jeans" com suspensório, algo bem desajustado na cintura dele e carregava uma enorme mochila nas costas.
Era muito estudioso, inteligente e, embora não pertencesse à minha turma, assistíamos alguma aulas em conjunto quando os professores nos reuniam em torno duma mesma causa para um novo aprendizado.
Nas aulas práticas eu o percebia extasiado com os encontros dos circuitos complexos da neuroanatomia, aqueles que explicam tudo que somos e fazemos. Era a parte mais difícil da matéria.
Ele dominava com exímia facilidade todos aqueles tratos neurológicos dissecados nos corpos guardados naquela sala de estudos tão diferente das demais e, claro, nas minha dúvidas, eu sempre me reportava a ele para aprender mais.
Lembro-me duma vez que tomamos um café numa lanchonete próxima à faculdade e quando me dispus a pagar a conta ele prontamente se antecipou a fazê-lo, meio indignado com a minha iniciativa.
Naquela época, o padrão de comportamento nos bares era bem outro e talvez hoje seria tido como algo machista se uma mulher fosse impedida de pagar a conta.
Nossos encontros eram bem casuais, sempre relacionados com os afazeres universitários.
Certo dia, depois das férias do início do ano, minha mãe me avisou que tinha um amigo perguntando por mim na porta do condomínio onde residíamos.
Olhei pela janela do meu quarto e lá estava ele, carregando nas costas a mesma estufada mochila e a torear seu "blue jeans" preso aos mesmos suspensórios de sempre.
Lembro que me surpreendi mais com a sua iniciativa de ali estar do que com a visita inesperada.
Nunca soube como ele descobriu meu endereço e claro, para as gerações da atual era digital, essa minha surpresa hoje soaria no mínimo ridícula, além de ininteligível. Como assim se hoje convivemos dentro dum celular?
Desci as escadas correndo, abri o portão e apenas ouvi um "oi, tudo bem?"
Ato contínuo, ele se desatou da sua icônica mochila, abriu um dos seus tantos bolsos "zipados" e tirou dela uma foto feita por ele na sua viagem de férias.
Entregou a mim uma paisagem bucólica, longínqua e paradisíaca: um barquinho solitário num "marzão" algo selvagem a apenas me relatar: "é uma lembrança que fiz para você...já tô indo, tchau!"
Como tudo que ganho, prezei o belo presente fotográfico que me seguiu guardado no tempo, embora naquela época eu não tenha percebido, quiçá, seu verdadeiro significado, ainda que fosse apenas metafórico duma crônica de vida.
Há poucos dias, no meio da bagunça sem chão eu nela naveguei dentro dum livro, onde no seu anverso mal se consegue ler o ali grafado, a data e o lugar do ocorrido :
"Tenerife, Fevereiro de 82".
Fiquei ali olhando a foto por um bom tempo até chegar nessa minha crônica para concluir bem intimamente com quem por ora me lê:
De fato, como barquinhos que todos somos pelas imprevisíveis águas da vida, a gente nunca tem a exata sensação tempestiva das nossas rotas...tampouco do nosso significado-por vezes explícito- nas vidas daqueles que navegam por nós...