Crônicas Médicas - Eu não tenho estômago para isso: uma história sobre o câncer
Quando ouvem falar na oncologia, tanto pessoas de fora da área da saúde quanto pessoas de dentro dela tendem a estremecer. Eu mesmo tenho meus traumas do passado, envolvendo o câncer dentro da família, mas, desde antes de entrar na faculdade, fiz da oncologia uma de minhas opções para a residência médica.
Em meu primeiro semestre na faculdade de medicina, foi proposto aos alunos estagiar em instituições que trabalhassem de forma paralela a questão biológica da saúde, tendo como foco o contexto psicológico e social dos indivíduos. Dentre as opções, uma, pouco visada pelos demais alunos, chamou-me a atenção: AAPECAN – Associação de Apoio à Pessoa com Câncer. Corri com meu grupo de amigos para garantir nossa vaga de estágio junto dessa instituição.
Não vou me delongar com explicações sobre todo o processo para iniciar os encontros nem sobre o que a faculdade cobrou de nós após a realização desse estágio. Em vez disso, vou me apegar aos detalhes que mais considero importantes para minha formação (como médico e pessoa); detalhes estes que vão muito além de avaliações, trabalhos, notas e protocolos da universidade.
Para quem não conhece, a AAPECAN oferece apoio psicossocial a pacientes e familiares que convivem com o câncer. Em uma sociedade que estigmatiza a pessoa e a reduz à sua doença, o trabalho feito pelos psicólogos, assistentes sociais e demais funcionários dessa organização faz com que aqueles a quem chamamos pacientes sintam-se novamente indivíduos, com características singulares, únicas. Lá, toda a equipe trabalha para reinserir cada pessoa de volta à comunidade, devolvendo-lhes à vida, ainda que se encontrem frente a frente com a morte.
Dentro deste cenário, o choque de realidade que recebi foi quase que instantâneo. Num ambiente onde esperava encontrar apatia, tristeza e luto, fui presenteado com sorrisos, dança e muita esperança. Assim, no primeiro dia de estágio, eu entendi o porquê de não devermos reduzir alguém ao problema que enfrenta. O personagem que lhes apresentarei agora é o melhor exemplo disso.
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Todos lá o conheciam por Seu José. Na casa dos setenta e poucos anos de idade, havia lutado e sobrevivido bravamente a um câncer no estômago quase cinco anos antes de eu o conhecer. Quem olhasse para ele jamais diria que aquele senhor havia passado por qualquer coisa do tipo.
Em uma das incontáveis conversas que tivemos, falamos sobre seu “antes e depois” com relação à doença. Ele não me disse exatamente como era antes de tudo isso, mas me afirmou que mudou como pessoa, e para melhor. Atribuiu essa mudança não apenas à doença em si, mas também à própria AAPECAN, que mostrou a ele que ainda havia motivos para viver, sonhar, sorrir.
Nessa conversa, contou-me também sobre a mudança de estilo de vida que teve de enfrentar para estar ali. Ele não teve a oportunidade de, pura e simplesmente, mudar seus hábitos alimentares ou parar de fumar e beber como muitos outros pacientes. Ele perdeu a chance quando esta lhe foi dada. Seu caso exigiu a retirada de todo o estômago, sendo, então, forçado a deixar para trás muito do que gostava: churrasco, feijoada, comidas pesadas e outras tantas coisas que não me cabem enumerar. Em troca, conquistou a oportunidade de seguir em frente com sua vida, uma nova vida.
Renovado, recuperado e sem câncer, Seu José abraçou a nova chance de viver tal qual os pais abraçam os filhos há tempos distantes. Assim, com um carinho quase materno, este homem passou a se dedicar àqueles que diziam não ter estômago para enfrentar a doença. Da mesma forma que um pai ensina seu filho a andar, Seu José mostrou os caminhos por entre a escuridão do câncer. Do mesmo modo que irmãos protegem uns aos outros, Seu José abraçou toda e qualquer pessoa que passou pela instituição, fosse ela paciente, acompanhante ou funcionário com atenção mais do que fraterna.
Mesmo livre do câncer, Seu José fazia questão de marcar presença em cada encontro realizado em grupo. Antes, durante e depois das reuniões, era a alma que mais brilhava por lá. Brincalhão, piadista e pé-de-valsa, estava sempre atrás de seus colegas com uma única missão: provar que sorrir é o melhor remédio, fosse por meio das trapalhadas, das brincadeiras ou de uma vaneira bem dançada (mesmo que não houvesse música tocando). Seu sorriso iluminava o dia de qualquer pessoa que porventura se encontrasse distante da luz.
Assim, quero sempre me lembrar deste homem - de pouco mais de um metro e setenta, careca brilhante e bigode branco - como inspiração para a vida e para meu futuro na área da saúde. Quero levar seu bom humor, assim como ele o leva ainda hoje, sempre comigo, acompanhado de sua fé, sua esperança, seu carisma, seu altruísmo e sua vontade não apenas de viver, mas, também e principalmente, de levar vida a quem padece.
Por fim, pode ser que, com o passar do tempo, eu venha a descobrir que não tenho estômago para trabalhar na oncologia. No entanto, ouvindo as palavras de Seu José, literalmente gastrectomizado, aprendi o que é necessário para curar a alma além do corpo. E eu sei que disso eu sou capaz!