ESPERO SILÊNCIO
À janela, tento ouvir a Ave-Maria. Vem suave e bela, subindo a ladeira, ecoando nas ruas. Tento. Não é fácil ouvir toda a melodia: carros e motos trespassam a Benedito Valadares... oh, eu odeio os carros e as motos que feito flechas inglórias varam a Benedito Valadares no começo da noite. São incômodos, desrespeitosos... passam como hordas bárbaras a caminho de Roma.
Os alto-falantes da Santo Antônio se esforçam, eu sei, como o colibri da fábula que, gota a gota, tentava apagar o incêndio na floresta. A Ave-Maria chega até mim entrecortada por esses desprezíveis veículos que, ingênua e pobremente, elegemos como símbolos do progresso. À janela, também me esforço para ouvi-la... A árvore na escola contempla o descerrar do dia, ignora o destino que os deuses tramaram: será abatida em breve, se se confirmarem os boatos.
Os derradeiros acordes de Schubert inauguram a noite. Recolho-me. Com minhas frustrações e meus moletons e os cabelos que insistem em branquear, recolho-me. Noutros tempos, e nessa hora, eu ouvia as palavras de reflexão do Xavier Pereira. Hoje, esforço-me para ouvir a Ave-Maria da Santo Antônio. Recolho-me.
No quarto, escrevo pequenas considerações. Bobagens de quem se angustia sem saber ao certo com o quê... é defeito de nascença, acho. Eu disse isso em um poema que, na companhia de outros poemas igualmente inéditos, espera um editor... Enquanto garatujo bobagens, as crônicas de Clarice me aguardam para serem desbravadas. Também na escrivaninha, a estatueta de Jorge Amado que eu trouxe de Ilhéus faz companhia ao He-Man. A palavra e a força, lado a lado, lembram-me que uma não exclui a outra, ambas são necessárias. Ah, como eu gostaria de rogar aos orixás da Bahia de Jorge e gritar “eu tenho a força”...
A noite impera, fria e inquieta. O tráfego não cessa. As palavras titubeiam. Um pernilongo insolente se esconde atrás da cortina. Eu espero silêncio, para pensar.