Do espelho de vidro ao espelho negro: "Black Mirror"
O ser humano, desde o mundo Antigo, sempre procurou ver a sua imagem refletida em qualquer objeto de superfície lisa. No entanto, os primeiros espelhos que eram de cobre ou de bronze não eram nada eficientes. Eles refletiam uma imagem embaçada e turva do ser humano. Até mesmo os espelhos feitos a partir de objetos de prata, que eram muito caros, não se conseguiam obter bons resultados refletidos da nitidez do rosto ou do corpo humano. Ainda no final da Idade Média, século 14, "a maioria das pessoas só veria o reflexo embaçado do próprio rosto numa poça de água", é o que diz o historiador inglês Ian Mortimer em seu belíssimo livro: "Séculos de transformações". Do mundo Antigo até a Idade Média os espelhos sempre foram um artigo de luxo, mas eles eram ineficientes para refletir a face do ser humano. O mundo físico do corpo humano refletido nitidamente com eficiência, através do espelho de vidro, foi uma descoberta medieval que alterou profundamente o modo como passamos a olhar para nós mesmos. Foi uma descoberta impactante que alterou o imaginário de toda uma época histórica: a Idade Moderna. Uma descoberta que inaugurou outra cosmovisão. O seja, o modo como o ser humano passou a vê a si mesmo. Inaugurou a cultura moderna Ocidental: o individualismo. Os primeiros espelhos de vidros foram criados por artesãos da cidade de Veneza, na Itália, no início do século 14. Os espelhos venezianos eram famosos pelas suas qualidades, mas o seu método de fabricação era mantido em segredo. O que se sabe é que nessa nova tecnologia envolvia uma mistura de estanho e mercúrio aplicada sobre um vidro plano que formava uma fina camada refletora. Ter um objeto deste em sua casa significava que você era uma pessoa de muitas posses. Até ao século 15, nem mesmo um rico fazendeiro ou comerciante comum tinha condição de ter um espelho de vidro em sua casa. Somente a nobreza e o próspero comerciante urbano podiam comprar um artigo desses. Mas o que significava comprar um espelho de vidro? Veja o que diz o historiador Ian Mortimer: estas pessoas que obtiveram o espelho de vidro "podia contemplar a própria imagem no espelho e, assim, saber como era vista por outros seres humanos. A capacidade de as pessoas avaliarem a própria aparência provocou um aumento na encomenda de retratos artísticos" por toda a Europa. Os usos do espelho de vidro permitiram com que as pessoas "vissem a si mesma com clareza pela primeira vez, juntamente com toda a singularidade de suas expressões e feições", diz este historiador. O espelho permitiu com que a pessoa pudesse avaliar a sua própria aparência física e construir sua identidade pessoal. Para o historiador Ian Mortimer, "o simples fato de alguém se ver num espelho ou ter sua imagem reproduzida num quadro como o centro das atenções o incentivava a pensar em si mesmo de uma forma diferente. Ele começou a ver a si próprio com um ser único". O indivíduo, portanto, passa a construir a sua identidade individual descolada da cultura coletivista da Idade Média. A individualidade, ou mesmo, o individualismo do modo como concebemos atualmente, não existia na cultura medieval. "As pessoas só entendiam a própria identidade no contexto do grupo", ou seja, "as pessoas comuns se viam apenas como parte de uma comunidade. É por isso que, na Idade Média, o banimento e o exílio eram considerados punições tão severas", afirma o historiador Inglês. A tecnologia do espelho de vidro impulsionou um novo campo da arte secular: o mercado de encomendar retratos artísticos para que as pessoas pudessem avaliar a sua própria aparência. De acordo com Ian Mortimer, "à medida que aumentou o número de pessoas importantes que contratavam artistas para reproduzir nas telas a sua imagem, tal imagem passou a ser mais vista por outros, incentivando mais encomendas de retratos por outros". O retrato artístico tornou-se uma "indústria" de promoção pessoal de homens ricos ou de mulheres bem relacionadas em busca de status. "Eles faziam com que os outros falassem dessas pessoas, tornando-as o centro das atenções". O culto de si mesmo, o sentimento de autoestima, o indivíduo deste final da Idade Média quer expressar sobre si mesmo através de sua imagem. Hoje, a individualidade dos rostos e corpos não precisa mais dos espelhos de vidros e nem de retratos artísticos da era medieval e renascentista. As tecnologias do presente são de espelhos negros - "black mirror" -, em telas eletrônicas de LCD ou AMOLED que carregamos no bolso ou na bolsa. Somos uma continuação desta revolução do final da Idade Média que a modernidade contemporânea ampliou e popularizou com as redes sociais. Nosso espelho agora é negro: "black mirror".