O varredor de ruas e a santidade da Medicina (*)
(*) Nem tudo são flores no Planeta Jardim - Crônicas de um futuro possível
APIABÁ (20.8 S, 47.5 O), 08/05/3.315
Amanhã vou ajudar na varreção das ruas. Nesta época do ano caem muitas folhas das árvores, chove mais e é preciso reforçar as equipes de manutenção do sistema viário.
Ano passado fui voluntário duas vezes, e foi bom porque aproveitei para inspecionar o escoamento pluvial, uma das responsabilidades da minha profissão. O sistema está bem dimensionado e não costuma apresentar panes. Estava tudo em ordem, mas identifiquei vários pontos onde era necessário repor o saibro nas ruas. Comuniquei o fato para a Comissão Municipal do Sistema Viário, porém eles resolveram não fazer a reposição, por ora, para não deslocar os tratores que estavam no terraceamento de ampliação da horticultura. Neste ano, poderei ver como está a situação do saibro e repassar novo relatório a eles.
Contudo, este não é o principal motivo do meu gosto sazonal pela varreção das ruas. O mais encantador é o contato com as pessoas, compartilhar sua alegria e senso de humor. E o principal motivo é reencontrar Ari Osvaldo, meu bom companheiro dos tempos de adolescência. Nos distanciamos devido às circunstâncias da vida. Eu me tornei operador de máquinas na extração de pedras, e ele, que sempre preferiu realizar os trabalhos mais simples, tornou-se gari. Os anos passaram e agora nos encontramos sempre nos dias de varreção.
Ari Osvaldo nunca teve gosto pela atividade intelectual. Sua imaginação sempre navegou melhor nas águas da peraltice e das anedotas, o que o tornava o foco central nas rodas de conversas, porque ele sempre foi o mais divertido da turma. Uma única vez, que eu saiba, ele foi autor de um pensamento mais complexo e sério. Na turma dos 17 anos, surpreendeu a todos fazendo uma inesperada preleção sobre o sistema sanitário ser ou não parte do sistema econômico. Discorreu sobre História, Ética, Psicologia tudo de uma vez só, deixando todo mundo surpreso.
Foi assim:
Um colega perguntou ao professor por quê o "Sistema Sanitário" é considerado distinto do "Sistema Econômico", se é sabido que o trabalho dos médicos, enfermeiros, técnicos de laboratório e assim por diante tem valor de troca da mesma forma que o trabalho dos trabalhadores das fábricas, do comércio e da agricultura, o tripé do "Sistema Econômico". (*)
Ari Osvaldo levantou-se e fez o discurso dizendo que antigamente, há 1.300 anos, os objetivos pessoais dos profissionais da saúde, da engenharia, do direito, da administração de empresas e todas as demais profissões mais especializadas, eram prioritariamente econômicos. Nos séculos XX e XXI fazia-se o uso pessoal de conhecimentos da Medicina para obtenção de poder pessoal e grupal, e essa forma de ser profissional perdeu o sentido na civilização da Era Atual.
Naquela época – prosseguiu , – os conhecimentos da Medicina visavam lucro, eram explorados economicamente, inclusive com graves prejuízos para os resultados práticos. A Medicina era exercida em estruturas extremamente complexas, a pesquisa tecnológica criava medicamentos sofisticados e equipamentos caríssimos para, por exemplo, “enxergar” os órgãos dentro do corpo humano, coisa que qualquer profissional da Acupuntura bem treinado “enxerga” sem usar nem mesmo óculos. A extrema especialização profissional, a sofisticação das drogas e aparelhos médico-hospitalares, tudo isso favorecia a concentração de poder nas mãos dos médicos e principalmente gerava miríficos lucros para os fabricantes de medicamentos e de equipamentos médicos, enquanto que a saúde da população permanecia péssima, sujeita a doenças endêmicas como câncer e depressão.
Isso ocorria porque no auge da Idade Moderna, nos anos 1800 a 2100 da Era Cristã, passou-se a acreditar que o ser humano é egoísta por natureza e que somente o interesse individual teria força suficiente para impulsionar a iniciativa econômica e a geração da riqueza. Maliciosamente, ou por uma incompreensível distorção cerebral dos intelectuais daquela época, associava-se o senso de humanidade, eterno motor dos processos civilizatórios, a teorias econômicas mal formuladas, que em alguns casos prescreviam até atos de violência para governar.
Com o surgimento da civilização da Era Atual – prosseguiu o Ari Osvaldo –, fortaleceram-se os recursos de autoconhecimento e autodeterminação dos indivíduos e ressurgiu o sentimento de responsabilidade individual pelo bom funcionamento coletivo. Assim, pela nova maneira de exercer as profissões, a Medicina se desfez da vaidade e recuperou sua santidade.
Na Era Atual, a luta por poder individual e grupal caiu em desuso. As habilidades pessoais e conhecimentos científicos voltaram a ser patrimônios da Humanidade e não fontes de privilégios individuais. Os profissionais da Saúde recebem créditos monetários por uma questão pratica: eles precisam pagar suas próprias contas, como qualquer um.
As empresas e bens imóveis têm proprietários por uma questão prática; os proprietários sabem que eles “não são donos” mas “estão donos” daquilo que serve a todos. Muitos ainda usam o sistema de créditos monetários para acumular bens materiais, o que não é proibido nem mesmo desaconselhado, mas essa prática vetusta não é mais a regra e sim a exceção. E isso se aplica aos profissionais do "Sistema Sanitário".
Quando Ari Osvaldo parou de falar a sala de aula ficou em silêncio por um bom tempo. Até o professor estava de boca aberta.
Terminado o turno de estudo, perguntei a Ari Osvaldo como ele tinha elaborado aquele discurso todo, e ele respondeu, com seu jeito gaiato: “Não foi como, foi onde”. Durante as leituras prévias prescritas para um seminário sobre a Teoria dos Sistemas Sociais, ele havia encontrado em casa os rascunhos de um avô, ou tio-avô. Leu e decorou os manuscritos e depois recitou em plena sala de aula, com adaptações improvisadas. Muito esperto.
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Em tempo: (*) Na teoria dos 14 sistemas sociais, do sociólogo alemão Niklas Luhmann, o sistema sanitário não se define pelo modo como as pessoas o executam, com ou sem remuneração, mas pelas suas funções, pela natureza objetiva da conservação da saúde. Sistemas econômico, educacional, religioso, jurídico, sanitário, alimentar, de transportes e assim por diante, num total que varia conforme o autor, são abstrações e se interpenetram, portanto não são setores de atividades estanques, como dá a entender a pergunta da personagem professor.