A TURMA LÁ DO BAIRRO

As memórias de Tiago sobre sua velha e querida Tijuquinha ficariam incompletas se somente recordassem as praças e logradouros do bairro ou a garotada com quem compartiu peladas de futebol, festinhas e demais atividades na infância e adolescência.

Muitos tipos humanos, alguns anônimos, povoaram a vizinhança do guri, tornando-os parte do universo familiar tijucano naqueles anos 50 e 60 já tão distantes. Do jornaleiro ao barbeiro do bairro, o rol de personagens é bastante significativo para justificar o esforço em recuperá-los e providenciar o respectivo registro.

Como cabe dar prioridade às senhoras, a primeira personagem a ser lembrada, possivelmente também a pioneira em fazer-se notar pelo menino, consistiu na lavadeira que vinha toda semana recolher parte da roupa da família, de modo a aliviar a carga rotineira de trabalho da mãe de Tiago, Dina. Ele acabara de mudar-se com os pais para o primeiro prédio em que moraram na rua Antônio Basílio, o Edifício Marechal Rondon, lá pelos idos de 1955. Logo começou a ver chegar à nova residência aquela senhora, afrodescendente, de sorriso manso e gentil, que deveria estar na faixa dos sessenta anos. Chamava-se Flauzina ou um nome que soava assim, se fosse mesmo o de batismo. Dina tratava sua valiosa auxiliar com a perceptível deferência devida aos mais velhos. Percebendo isso e ouvindo ocasionais comentários elogiosos da mãe acerca da lavadeira, Tiago também passou a nutrir simpatia pela visitante periódica, bem como a valorizar seu modo sereno de conversar e sua sincera humildade.

Ao passar a outro apartamento, no Edifício Nigri, na mesma rua, cerca de cinco anos mais tarde, as visitas de Flauzina cessaram, sem que o distraído menino se lembrasse de perguntar por quê. Talvez a simpática senhora já não estivesse em condições de continuar o serviço ou, então, sua ajuda não mais se fizesse necessária, dada a aquisição de máquina lava-roupa pela família. Seja como for, ela garantiu seu lugar na “turma” da Tijuca.

Outra figura, quase folclórica, e igualmente de idade relativamente avançada, era o padeiro (de nome ignorado), quem diariamente trazia seu cesto de pães para a venda a domicílio. Tiago apreciava a vinda do visitante, a qual quase sempre lhe rendia algum pão doce saboroso, que a boa mãe comprava como complemento às costumeiras bisnagas do tipo francês. Antes mesmo de mudar daquele primeiro apartamento, a família deixou de utilizar o serviço domiciliar do velho padeiro. Começavam a proliferar as padarias no bairro, certamente facilitando as compras no balcão. Após a mudança para a residência seguinte, Tiago já tinha idade e responsabilidade suficientes para ser encarregado de ir à padaria mais próxima comprar os pães. Para sua sorte, não precisava fazê-lo todo santo dia, o que reduzia o risco de perder algum de seus desenhos animados favoritos na TV ou de assustar-se com os latidos dos cães nas casas ainda existentes na rua.

Havia um leiteiro no bairro que ficou marcado na lembrança do menino, embora jamais tivessem mantido qualquer contato direto. Tratava-se de personagem que diariamente transitava pela rua de manhã cedo, a puxar sua carrocinha cheia de garrafas de leite. O tipo parecia flutuar em suas passadas largas e silenciosas. Devia usar tênis de solado muito macio para ostentar tanta leveza. Apesar da curiosidade, o menino nunca se animou a perguntar ao leiteiro a marca daqueles calçados mágicos.

Chegou a vez do barbeiro da vizinhança. Chamava-se Lauro (embora usuário de longa data da barbearia, Tiago somente soube o nome anos depois) e trabalhava no Salão Silva, na rua Pinto de Figueiredo, perpendicular à Antônio Basílio. Fora um breve período em que frequentou outro local, o jovem foi assíduo freguês do mesmo barbeiro, que se revelou um artista em contornar as cócegas de seu irrequieto cliente quando criança: escolhia temas de conversa apropriados para prender a atenção do cosquento enquanto efetuava os cortes do pé do cabelo e em volta das orelhas.

Além dessa proeza, Lauro conseguiu convencer Tiago, entre os doze e os quinze anos, a usar “cabelo de preguiçoso”, corte bem curto, destinado a não dar trabalho pra pentear (também devia, certamente, requerer menos esforço ao profissional para cortar desse jeito). Em plena era dos grupos de música, estrangeiros e tupiniquins, que estimulavam os jovens a cultivar fartas cabeleiras, a opção do menino pela “contramão da história” constituiu autêntica façanha de seu barbeiro. Ao finalmente ceder, no final da adolescência, à moda dos cabelos tropicalistas é que o jovem trocou de barbearia, se bem que continuou a passar pelo Salão Silva para bater papo com o amigo Lauro.

Para não estender, demasiadamente, a lista dos membros da turma tijucana – que incluem, como é natural, açougueiro, peixeiro, alfaiate, sapateiro e vários outros profissionais -, concluam-se estas primeiras memórias com figura das mais emblemáticas, ao menos para os amantes da leitura de periódicos e revistas. Polillo, o inesquecível jornaleiro, descendia de família italiana e seu português “cantado” acentuava-lhe o temperamento bonachão. A banca ficava na esquina das ruas Visconde de Itaguaí e Conde de Bonfim, em ponto bem favorável à aquisição do Jornal dos Sports e das diferentes histórias em quadrinhos da predileção de Tiago, quando saltava do ônibus, ao regressar do colégio para casa. Ah, sim! Não se esqueça das infindáveis coleções de figurinhas de futebol, automóveis, espadachins e quantas mais houvesse.

Assim como no caso de seu barbeiro, o guri tinha “dedos de prosa” constantes e agradáveis com Polillo, a quem nunca viu de mau humor. Com o passar do tempo, sabendo das HQ favoritas de Tiago, o jornaleiro reservava exemplares para seu freguês e até conseguia uma ou outra edição que eventualmente deixasse de ser adquirida na ocasião certa. A amizade entre ambos estendeu-se ao pai do menino, colecionador emérito de publicações por fascículos. Graças à colaboração pessoal do dono da banca de jornais, nenhuma coleção ficou incompleta.

Diversamente do que ocorreu no caso dos demais integrantes da turma do bairro, com os quais o contato se perdeu, o jornaleiro permaneceu no roteiro habitual de Tiago, na Tijuca. Adulto, já residente fora do Rio, o inveterado tijucano comparecia à banca de Polillo toda vez que vinha à cidade de férias. A conversa retomava sem solução de continuidade. Seu amigo entristeceu-se ao saber da morte do pai de Tiago e, como a vida não permite ser de outra maneira, motivou a tristeza de um dia também partir.

A boa lembrança resiste ao passar dos anos, porém. Vale a pena rememorar tantos personagens saudosos, tantos exemplos positivos de humildade, de camaradagem, de tudo enfim que enriquece a vida de quem com eles conviveu, por mais breve ou longo haja sido o convívio em questão.

JAX

Junho 2019.

Coluna do autor, Divulgaescritor, abril 2020.