Questão de técnica
Hoje descobri que, até para tirar doce de criança, é preciso técnica. Pensei que a liberdade de expressão fosse suficiente. Engano meu. É preciso técnica, e muita. Não basta aproximar-se da vítima e, de súbito, arrancar-lhe o doce da boca. Quem assim procede, não domina a técnica do bem proceder em matéria de subtrair doce de criança. Porque a criança, ao ver-se subtraída, em ato de legítima defesa e quase que involuntariamente, abre um berreiro gigante e, não raro, bota-se a chorar. Aí os presentes à ação delituosa logo percebem que o ator principal foi malogrado pelo coadjuvante.
Quem deseja tirar doce de criança deve dominar a técnica, o modus operandi, manjar dos paranauês inerentes à ação. Não deve ser precipitado ou temerário a ponto de espantar nem ignorar a vítima. Deve proceder feito esta mulher que está sob a sombra da árvore em frente aqui em casa, acompanhada de uma criança, com um pirulito à boca. Pelos traços físicos e olhar, julgo que seja seu filho.
Esta mulher, provavelmente mulher-mãe, maneja a técnica. Não me parece temerária nem amadora no ofício. Ela sabe atrair a vítima. Sabe como chamá-la sem lhe causar suspeitas. Ela manja dos paranauês. Calma e suavemente atrai a indefesa criança para perto de si, acocora-se, alisa-lhe o cabelo e o rosto, beija-a e, de súbito, sem nem mesmo dá-lhe a chance à defesa, retira-lhe o pirulito da boca. Sem berreiro nem lágrimas, é perpetrado o crime. Um crime com delito, mas aparentemente sem vítimas.
Fico, aqui da janela de casa, olhando essa mulher-mãe. Na televisão o noticiário informa que Lázaro, o bárbaro, como diz a imprensa, continua em isolamento social. Muitos cães, vários helicópteros, dezenas de fuzis, milhares de soldados, mais de dez dias de buscas, e ainda não acharam Lázaro, o bárbaro.
Há quem diga que o tal Lázaro é encantado, que anda sob a proteção de São Cipriano, que Durango Kid quase o pegou. Mas há quem diga que o Estado, parece, perdeu a técnica. Porque, diz igualmente o senso comum, tudo é questão de técnica.
Tem cães, tem helicópteros, tem fuzis, tem milhares de soldados, tem pouca técnica. Tem a imprensa. E tem Lázaro, com suas barbaridades, enfrentando cães, helicópteros, fuzis, soldados, ocupando a imprensa e o noticiário. Solto e dominando a técnica de sobreviver na mata. Parece que o Estado perdeu mesmo a técnica...
Fico, aqui da janela de casa, a olhar essa mulher-mãe e a criança ao lado, sem o pirulito à boca e sem sentir falta dele. Ambos, a mãe e o provável filho, dominam a técnica, cada qual a seu modo. Ela, a de subtrair doce de criança sem causar berreiro nem choros; ele, a de fingir que não se importa com o furto. Ambos excelentes atores, domando a técnica: a técnica de vencer e não a de subjugar. Longe ou distante, não se sabe ao certo, Lázaro continua em isolamento social. Até quando? O Estado não sabe.