Professor em vida integral

Essa semana me aconteceu algo bizarríssimo, eu acordei, me arrumei, fui à UERJ e fui vacinado. Assim, simples. Entrei, fiquei lá por 13 minutos, fui vacinado e sai. Sai de lá tomado por um sentimento indescritivelmente bom; também saí de lá tão orgulhoso do SUS e da Ciência, que fiz o que pude para ostentar pelo máximo de tempo possível o algodão que estancava as pequenas gotas que escorreram do meu braço após a saída da seringa, mas que secou-se na mesma hora, afinal, o processo é rápido e indolor. Mas aquele chumaço de algodão e a carteirinha de vacinação eram meus troféus de “menino adulto”, que buscou, como pode, - embora tenha errado em alguns momentos - respeitar as medidas sanitárias.

Eu queria dizer que tudo foi incrível depois disso, mas não foi. Não, foi por um tempo, a Radial Oeste pareceu mais viva, o Maracanã estava com um cinza mais colorido, posso jurar que ouvi festa na Mangueira e tenho certeza que subi a passarela do Metrô cantando e mandando mensagens para todo mundo. Também sei que estava tão eufórico que passei um áudio em inglês para o me professor de inglês, falando qualquer coisa, porque eu queria muito falar em inglês e demonstrar minha felicidade. Fui um recém-vacinado extremamente feliz por 8 horas contínuas.

Passado o susto, posso dizer: vivi uma verdadeira ressaca pós-vacina; a madrugada daquele dia foi repleta de efeitos colaterais, efeitos esses, totalmente esperados e dentro do comum para uma vacina - que desde que o mundo é mundo, causam efeitos colaterais -,mas ali, deitado na minha cama, sentindo os efeitos da febre alta, totalmente imerso no sentimento de morte iminente que somente homens possuem diante de qualquer indicativo de febre ou doença, me questionei o que eu havia feito de errado para receber um efeito colateral tão severo. Me lembrei que, na hora de analisar meus dados, a voluntária me perguntou qual era minha área de atuação como professor, ao passo que, confiante, eu disse: “História...infelizmente” e rimos. Só poderia ter sido isso, na certa eu ofendi algum patrono da História, pior ainda, eu ofendi algum patrono dos professores. Sim, ali, foi o que pensei. O medo e a febre fazem coisas terríveis.

Mas, fato é que, me vacinei como professor, no último dia 16 foi a vez de eu, meus professores e demais colegas sermos vacinados, sou professor há mais tempo do que tenho de faculdade e certamente há mais tempo que terei de formado. Minha primeira aula como professor substituto ocorreu mais ou menos um mês antes do início das minhas aulas da faculdade, há distantes 3 anos, poucos meses depois, eu já era titular da disciplina, depois assistente de coordenação de disciplina, assistente de coordenador, até que me tornei Coordenador Geral, função que acumulo até hoje com a de Titular e Coordenador substituto de disciplina. A minha relação com a sala de aula foi arrebatadora e meteórica, foi graças a ela que, mesmo sendo do Bacharelado, mergulhei de cabeça nas disciplinas pedagógicas da faculdade, estudando, lendo, analisando e produzindo sobre dezenas de pedagogos, psicólogos e sociólogos.

Mas a grande questão aqui é que todo professor é um pouco desapontado, ser professor no Brasil não é uma tarefa fácil, e é certo que em torno de 2 ou 3 anos você vai se sentir um pouco ou muito cansado, e vai querer se reinventar. A maioria dos meus colegas de classe entende os percalços da profissão no estágio, no último ano da faculdade, uma outra parte vai entender melhor a defasagem do sistema educacional dentro da sala de aula, isso leva de dois a três anos, talvez menos; o cansaço bate quando você entende o tamanho do problema da educação. Então, enquanto todos ao meu redor estão eufóricos querendo ter alunos, indo atrás de escolas, estágios e afins, eu já estou cansado. Esse cansaço não significa de forma alguma que meus alunos não me fazem mais feliz, menos ainda a sala de aula, mas significa que o cansaço é uma parte inexorável do processo.

Se questionar e entender sua função e relevância na vida de um aluno é algo extremamente conflituoso. Até hoje não sei se mudei significativamente a vida de um aluno, mas muitos mudaram a minha vida de forma tão significativa e intensa, que é terminantemente impossível que a minha vida seja a mesma depois desse encontro. Eu acredito, na verdade, que são esses encontros que me mantiveram tão firme na profissão. Eu amo a sala de aula, amo ser professor e amo meus alunos, mas quando o cansaço veio, eu decidi me reinventar, mas ainda não sei se é possível se reinventar aos 21 anos quando você ainda não se inventou. Decidi por um novo caminho, um caminho que reacendeu um amor profissional tão antigo, que eclipsou todos os demais amores que tenho, inclusive esse, de escrever.

Lá, antes da vacina, esse amor ainda eclipsava todos os outros, foi por ele, mas também pelo cansaço, que veio o “infelizmente, professor de História”, não só por ele… vocês entenderam. Foi um eclipse tão forte, que acendeu a minha ansiedade de vivê-lo, como se o mundo fosse acabar amanhã, porque, de fato, tem 1 ano e 3 meses que eu acho que o mundo vai acabar amanhã. Então sim, foi um “infelizmente”, porque eu estou cansado, querendo me reinventar e viver logo esse sonho que estava, até então, adormecido, esperando seu devido tempo e maturidade para despontar.

Foi depois da vacina, depois da febre, da dor e do medo, que eu pude entender o tamanho das coisas, a vacina me dá a chance de permanecer vivo diante de um massacre de quase 500 mil vidas, 500 mil amores, 500 mil sonhos. Essa vida, para mim, só pôde ser mantida porque eu sou professor. Ter me tornado professor aos 18 anos foi o que me trouxe vida em todos os sentidos, foi o que injetou fôlego para despertar e lutar por mim e pelas coisas que acredito, pelos meus sonhos e pelos sonhos dos meus alunos, por um futuro melhor para eles e para mim. Foi através dessa chance de viver que eu me posicionei no mundo, entendi o que eu gostava e não gostava, e é esse movimento constante que me mantém vivo. A vacina me deu a chance de continuar vivo, porque a vida me foi dada através da sala de aula.

Se você me questionar se eu quero ser apenas professor, a resposta ainda será negativa. Aquele amor eclipse ainda está aqui, mais vivo do que nunca, querendo, a cada dia, ser mais real. Digamos que o eclipse tem ido embora e tem dado lugar a um sol brilhante, com a missão de me aquecer e me relembrar que dias claros têm seu tempo certo para surgirem, e a sala de aula é o meu céu, às vezes azul, às vezes cinza, às vezes assustadora, mas ele sempre estará lá, sendo grande, sendo enorme, permitindo que estrelas, cometas e meteoros cruzem seu espaço, alimentando a diversidade que há no meu mundo. Cada um em seu espaço, cada um com sua beleza, cada um com seu destaque, cada um coexistindo e compondo a beleza que é precisa para o meu existir.

Uma amiga, pouco antes da vacinação me disse o seguinte: “Não importa o lugar, eles ainda serão professores.”

Eu posso ser e serei muitas coisas, terei prazer em todas, darei meu melhor em todas. Mas eu sempre serei professor. Por isso existo. Por isso resisto. Por isso sou.

Viva o SUS!

Viva a Ciência!

Viva a vida!

Pedro H Ribeiro
Enviado por Pedro H Ribeiro em 19/06/2021
Reeditado em 20/06/2021
Código do texto: T7282057
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