Nem me fale

Quem como eu andou anos e anos pelos corredores e pátios escolares, certamente pode descrever os mestres que desfrutam desses espaços. Há os que apenas caminham por ali, sem parar, sem conversar e fazem cumprimentos não mais que protocolares. Há os que usam até mesmo o recreio para conversar com alunos, brincar, contar piadas – tornam-se verdadeiros ídolos e geralmente têm bom trânsito com a juventude. Salviano – personagem deste nosso relato – inclui-se entre os primeiros: sério, de pouca conversa, passava pelos corredores e cumprimentava um ou outro por amostragem. Não era deseducado. Era questão de temperamento, apenas isso. Tinha até inveja dos comunicadores, que faziam do extraclasse extensão das aulas e angariavam mais amizades. Mas fazer o quê? Acabava deixando a garganta para uso nas explanações de aula.

Era mesmo raro o homem estacionar e se entregar a um diálogo, pequeno que fosse, mas, naquela noite, na universidade, ele deu de cara com o Rafael, um antigo vizinho, que há muito não encontrava, visto que o agora universitário havia se mudado, certamente buscando um aluguel mais em conta. E o Rafael teve até o impulso de abraçar o velho conhecido, mas limitou-se a estender-lhe a mão, a que se seguiu o início de um diálogo, certamente curto, como há de presumir quem acompanha este relato.

– Quanto alegria, professor! Como vão todos na família?

– Muito bem, muito bem, felizmente; e a sua esposa, a dona Marta?

Rafael suspirou e respondeu insatisfeito com a indagação:

– Ah, pelo amor de Deus! Nem me fale, nem me fale naquela mulher...

O professor entendeu o dissabor causado e passou-lhe pela cabeça algo grave, talvez gravíssimo, como uma traição, embora conhecesse os ótimos créditos morais da renegada. Num lance rápido, muda, então, o curso da conversa:

– Rapaz, fico contente em te ver aqui nesta universidade. Como está o curso? Os cálculos?

– Nem me fale! Tomei pau em Cálculo já por três vezes – respondeu, não sem antes suspirar.

O homem, calado por natureza e pouco talhado a conselhos e incentivos, em novo lance tentou outra notícia, quem sabe um pouco melhor:

– Mas as disciplinas de apoio?

– Nem me fale! Até agora não passei em nenhuma matéria – replicou o ex-vizinho, um tanto desolado.

Na busca de algo mais alvissareiro, Salviano mudou radicalmente de assunto e trouxe para a conversa um antigo vizinho de ambos:

– E o Fellet? Já encontrou ele por aqui?

– Nem me fale!... Me reprovou por milésimos e ainda me aprontou uma no restaurante universitário.

– Como assim, Rafael?

– Tenho vivido de pequenos bicos e, pra economizar, uso o restaurante da universidade pro almoço e pra janta. Outro dia, imagina?

– Hem?

– Eu estava almoçando e o Fellet chegou e gritou alto pra todo mundo ouvir: ô Rafael, vê se cria vergonha; você é da noite e fica filando almoço aqui!

E se lamentando:

– Veja bem, o Fellet, ele que já foi um pobretão...

Salviano, derrotado, vasculhou na mente algo que pudesse ter uma resposta mais agradável, mas não lhe veio nada, menos o estridente sinal de início da aula. Despediu-se, facultou seus préstimos e foi embora, ensinar, ensinar, longe, tão longe dos grandes problemas da vida...