INÚTIL PRONTIDÃO
(ALBERTO VASCONCELOS)
Como de costume, durante as faxinas, Francisco José passou o dia fora do minúsculo apartamento aonde vivia desde que, viúvo e só, chegara a conclusão de que a casa, que fora seu lar por tantos anos, agora lhe parecia um convento. Grande, vazio e frio sem a presença da esposa e dos filhos que, depois de criados, foram cuidar de suas vidas em cidades distantes e em outros países.
Sobre o cooktop, dentro do copo para chamar a sua atenção, o bilhete de dona Sara com a recomendação para ele estender a roupa que estava na máquina de lavar.
Ela teve que largar o serviço daquele dia pela metade por conta de um desastre ocorrido com um dos seus netos.
Franc, como todos lhe chamavam, recolheu a roupa e foi para a varanda armar o varal de pé.
Lá fora, a noite iluminada por um fiapo de lua no poente, lhe trouxe à memória as palavras de sua mãe – posta ao poente, quarto crescente.
Poucas nuvens, tempo seco. Longe, bem longe já quase no horizonte, uma estrela cadente avivou outra recomendação da infância – faça um pedido.
Sentado na cadeira de balanço, Franc resolveu anotar nas páginas da revista de palavras cruzadas, as recomendações e ameaças dos acontecimentos catastróficos pelos quais a humanidade passaria em datas sempre e sempre adiadas, mas nunca realizadas.
Jesus vem! Foi a ameaça mais presente desde a infância. Ou ficava “bonzinho” ou seria condenado às penas eternas.
Nesses últimos anos, pelas previsões dos charlatães o mundo devia ter-se acabado uma dezena de vezes.
Nibiru, o asteroide, terá que fazer um tremendo malabarismo para se chocar com a Terra, pois que pela trajetória atual, o ponto mais próximo de nós será de trezentos milhões de quilômetros, mas esse detalhe não impede que ele seja uma ameaça várias vezes citada como se fosse “real”.
Desde o fim da segunda grande guerra, as ameaças do início da terceira nunca saíram dos noticiários.
Terremotos, tsunamis, vulcanismo e aquecimento global por conta da atividade humana associados ao desmatamento provocaria a desertificação que causaria a falta de alimentos que levaria centenas de milhares de indivíduos à morte, assim como se esgotariam todas as fontes de água potável.
O desenvolvimento da inteligência artificial e a robotização extinguiria quase a totalidade dos empregos formais e quando menos se esperar haverão 90 dias de trevas.
O sistema. Ah! O sistema, este sim vai dominar tudo e a todos, pois contra o qual não há alternativa.
Em sequência ao conceito do descartável, surgiu o minimalismo com ênfase no veganismo para os mais radicais. Vegetarianos e adeptos da dieta páleo agora têm o objetivo de retirarem-se para as matas, para os montes a fim de se resguardarem dos acontecimentos catastróficos que estão por vir.
Será?
Na próxima semana, Franc completará os seus 75 anos de idade e agora, pensando bem, quantas coisas deixou de fazer por acreditar nessas falácias.
(CLÉA MAGNANI)
A vida escorria por entre as malhas dos dias, meses e anos, e tudo já se tornara uma rotina. Dias de faxina, era quando Franc mais se aproximava de alguém.
Ao abrir a porta para dona Sara, que com seu simpático sorriso o cumprimentava, sentia que ainda havia mais alguém além dele, dentro daquelas paredes. Mesmo assim, ela vinha para trabalhar, e não para conversar. Então apenas lhe perguntava como estava o tempo lá fora, para assim decidir como passar o dia.
Se tivesse sol, caminhava pela vizinhança, ou no parque da Aclimação, a dois quarteirões dali, e depois almoçaria no restaurante do Vitório, de quem era freguês antigo, aonde costumava ir nas noites de sábado, comer uma pizza, com sua falecida esposa. Agora, ia apenas no almoço do dia da faxina.
Se chovesse, comprava o jornal, na banca da esquina e levava um livro para, no hall do prédio, ficar até o aspirador de pó ser desligado e ele poder voltar para sua sala.
Dona Sara preparava as refeições para a semana toda, congelava as porções e deixava o jantar pronto. Para os almoços, trivial, e sopinhas variadas para os jantares que ele descongelava e tomava, acompanhadas de torradas e meia taça de vinho tinto, que era bom para o coração.
Ela saía às 16 horas, e o silêncio voltava a reinar no apartamento.
Naquela noite, se recordando das histórias de sua mãe lhe chamando a atenção para a lua e suas fases, e das notícias alarmistas que pessoas inconsequentes, só pelo prazer de serem tidos como “videntes”, “visionários” ou “iluminados”, Franc se lembrava daqueles que declararam ter a certeza de que o mundo iria se acabar com data marcada, causaram alguns desastres entre os que, acreditando no fim de tudo, fizeram dívidas imensas “que não seriam pagas...” embriagaram-se, e fizeram as maiores loucuras, certos de que as consequências nunca lhes seriam cobradas... Mas que no dia seguinte, ao encararem a realidade, alguns até acabaram suicidando.
Para esses o mundo acabou mesmo...
Perdido em seus pensamentos, Franc fez uma retrospectiva de sua vida, sua infância de filho de imigrantes e das fazendas onde seus pais moraram e trabalharam, e onde ele e seus quatro irmãos mais velhos se criaram.
A vinda para a Capital.
O primeiro emprego.
Seu casamento.
O sacrifício para dar estudo e vida decente para seus filhos.
A compra da casa na Aclimação.
Amigos que nunca mais encontrou.
A aposentadoria, e a mudança total de sua rotina diária.
A doença e a partida da esposa.
Os filhos, cada um indo cuidar de suas vidas.
A venda da casa.
O minúsculo apartamento.
O vazio.
Fora o tempo todo um homem prevenido. Sempre calculou muito bem cada passo a ser dado. Nunca ousou nada. Pensava, calculava, estudava, e media cada passo.
Sempre alerta para nunca ser “pego desprevenido”. Aprendeu a não acreditar em tudo o que vinham lhe dizer.
Queria estar dono de todas as situações. E conseguiu!
Mas teria conseguido mesmo?
A morte da esposa.
A distância dos filhos.
A solidão.
Foram situações contra as quais ele não pode lutar.
A Vida é imprevisível.
Ficar eternamente de prontidão é inútil.