O sapateiro
Hoje era um domingo como todos os outros, um pouco mais cansativo, mas exatamente igual, desconsiderando a medida de cansaço. Ouvi um sapateiro gritar na rua e como precisava consertar dois tênis, chamei-o. Logo que o vi, senti uma surpresa, pois a voz que falava me parecia de um velhinho. Mas ele parecia ter menos de 40 anos. Era magro, tinha a postura curvada e parecia cansado. O sol estava forte, era meio dia. Ofereci um copo de água, depois pedi que minha irmã perguntasse se ele queria almoçar. Ele aceitou, então fizemos um prato de comida e levamos no pátio. Tranquei a porta, dizendo que era para o cachorro não atrapalhá-lo, mas a verdade é que eu estava com medo. Ele comia enquanto eu estava na cozinha, no desconforto que qualquer mulher deve sentir ao saber que tem um homem desconhecido no pátio de casa (Se homens próximos já me fizeram tanto mal, imagina um desconhecido...)
Mas venci o desconforto, fui pegar o prato e ele pediu mais água. Tinha comido tudo. Me compadeci, me coloquei no lugar daquele homem que devia estar com fome e andando nas ruas atrás de algo para consertar. Parafraseando Rubem Alves, em um passe de mágica, eu era o sapateiro e sentia fome e sede.
Ele me mostrou o que já tinha feito nos sapatos. Um trabalho muito bem feito. Perguntou meu nome, respondi e ele arregalou os olhos. Perguntei se ele conhecia alguém com esse nome e ele disse: "minha ex namorada tinha esse nome. Ela me abandonou." O desconforto voltou. Me senti culpada por ter esse nome e com medo dele projetar em mim a raiva que sentia da outra Gisely. Sabemos, às vezes o amor não correspondido se veste de raiva pra continuar vivendo dentro de alguém.
Ele não me fez nada. Ainda assim, o desconforto continuou. Algo como intuição, ou trauma, não sei. Só sei que ele começou a falar da vida dele. De como sua mãe abandonou os seis filhos com o pai para fugir com o amante. De como lutou para sobreviver. De como engravidou uma namorada aos 16 anos (ela tinha 14, como Clarisse, da Legião Urbana). De como desistiu dos sonhos e criou a filha até os 3 anos. De como não vê a filha há quase 10 anos. "Eu mandei mensagem pelo Facebook, sabe. Tô esperando ela responder, ainda não viu." Ah, a frustração vestida de inocência... Acho que ela não quer vê-lo. Aquilo doeu até em mim. Ele começou a lagrimar e disse que a sua filha tem a minha idade. 21 anos. E que sonha em ser médica. "Tenho certeza de que ela vai ter uma vida melhor do que a minha. Ela não teve filho cedo, tá estudando pro sonho dela. Tá num bom caminho."
Vendo meu desconforto por não saber o que falar, ele me perguntou o que eu fazia. Eu faço muitas coisas, mas respondi o que achava que ele queria saber: sou estudante de pedagogia, tenho um estágio no maternal e aos finais de semana trabalho como atendente numa loja de lingeries e sex shop. "Ainda bem que tu é virada." Esse foi um dos raros momentos em que eu senti orgulho por estar cansada há quase 4 meses nessa rotina.
Ele contou que trabalhou como porteiro de escolas, mas com a pandemia acabou perdendo o emprego e teve que se virar nas ruas. Eu percebi a razão de estar desconfortável. Ele trazia um choque de realidade que me perturba, mas que é necessário. Não gosto da ideia de falar que devemos nos sentir bem porque há gente sofrendo mais do que nós. Não faz sentido. Mas gosto da ideia de poder fazer algo por quem sofre. E assim esquecer um pouco da minha dor também.
Quando o sapateiro terminou, ele disse que não tinha telefone, mas que podia guardar o meu, para quando tivesse. Escrevi no papel, junto com o número de uma senhora daqui da rua. Guardou o papel, agradeceu e saiu. Acho que não foi só o sapato que ele consertou.