A última noite
A pandemia da "peste negra" foi tão avassaladora na Europa do final da Idade Média, século 14, que este século poderia ser chamado tranquilamente de "o século do medo" ou também de "o século da morte". Como afirma o professor e historiador inglês Ian Mortimer, "as pessoas iam para cama sabendo que aquela noite podia muito bem ser a última". Temos uma tendência de relativizar os acontecimentos distantes do nosso tempo. No entanto, a "peste negra" foi uma catástrofe devastadora que assolou a Europa medieval em várias grandes ondas pandêmicas e descontínua. A primeira grande onda da pandemia da "peste negra" na Europa medieval eclodiu no século 6 com muita virulência e causando uma mortandade imensa. Esta primeira onda da "peste" só irá perder força e desaparecer no final do século 8. A falta de ciência, ou seja, o pouco conhecimento que se tinha naquela época sobre de onde vinha a doença, como ela se transmitia e como obter a cura acabou por fomentar a morte de milhões de pessoas e espalhando o medo. Buscar explicações religiosas como "castigo de Deus" e o "fim dos tempos", numa era de grande religiosidade sem qualquer educação escolar científica, não pode ser vista e nem comparada ao tempo de hoje com o misticismo negacionista de profunda ignorância instrumentalizada pelo poder público com propósitos ideológicos autoritários. Na Idade Média a ignorância em relação a "peste negra" era da falta de conhecimento mesmo sobre o patógeno causador da doença e menos por instrumentação ideológica do poder clerical. Embora a Igreja da época utilizou-se da desgraça da "peste" para fazer proselitismo profético e apocalíptico. A segunda onda da "peste negra" foi ainda mais mortífera na Europa medieval, a partir da segunda metade do século 14, por volta de 1347. Como diz o historiador Ian Mortimer, "fazia quase seiscentos anos que ninguém tivera notícias daquela peste. Por isso, ninguém estava preparado para as consequências de seu reaparecimento" novamente. Quando se trata de catástrofes naturais a história humana é afetada pelas contingências própria do seu tempo, ou seja, o acaso é um elemento constituinte da história humana. O renascimento comercial, o crescimento urbano, todas as cidades mercantis da Europa medieval foram impactadas pela segunda onda da pandemia da "peste negra" do século 14. Quantos morreram vitimados pela "peste" que assolou aquele século? Segundo o historiador Ian Mortimer, "o número de mortos pode ter chegado a quase vinte e quatro milhões de cristãos" que pode corresponder a mais ou menos "um terço da Cristandade". De acordo com este historiador, "pesquisas recentes indicam que o total de vítimas pode ter sido muito maior". E, durante todo o século 14, de décadas em décadas, houve diversos surtos da pandemia da "peste negra" que irá durar até o século 17. A "peste", diz este mesmo historiador, "não poupava ninguém: ricos e pobre, mulheres e crianças, cristãos e muçulmanos, todos pereciam". Na história humana, quando se trata de catástrofes naturais, seja a pessoa religiosa ou secular, ninguém escapa das contingências. E quando se trata de doença no ser humano, o acaso é imponderável. Por isso mesmo, em época de ciências médicas, como a nossa, o acaso pode ser menos impactante quando colocamos o conhecimento a disposição de todos com seriedade em relação às doenças. O que aprendemos com o passado é o quanto a ignorância estrutural de uma época, sobre aquilo que de fato não se conhecia, a peste negra, afetou violentamente toda uma sociedade. Enquanto hoje, os esforços científicos que detemos sobre a covid-19, nossa "peste" contemporânea, não deve e nem pode ser tratada com o misticismo medieval de quem governa um país em pleno século 21. Ao contrário, da Idade Média do século 14, não precisamos dormir nos tempos atuais acreditando que seja a nossa última noite.