A Agente
A Agente
Veio do mar. O barco que a trouxe, a deixou no porto, lugar para onde voltaria logo, por certo, porém chegou incógnita à Parisiense. Não se sabe muito sobre ela, decisões e acontecimentos, destino ou origem. A fala mansa esconde um português europeu clássico, com um leve sotaque de Lisboa. Algo mais que não se conhece dela: se nasceu ou viveu lá. Era esperada na Cafeteria, de mesa posta - o vinho, água, pães, croissants, doces, frutas, carnes e patês colocados de forma elegante para a bela senhora, que afrouxou a echarpe, juntou o leque, bolsa e chapéu elegante na cadeira ao lado no exato momento em que a garçonete trazia a água fervente para o preparo dos grãos recentemente torrados. O cheiro misto de pães, café e bolos invadiram-na e, por um instante, ela esqueceu o motivo de sua estadia em terras brasis.
Sentada à mesa afastada, seus olhos comparam o falso Sena da paisagem anexa ao Café com a visão conhecida de certa cafeteria-biblioteca de Paris, um sorriso sarcástico esconde sua verdadeira opinião.
O pedido antecipado por uma mesa mais reservada era inútil, já que ela não é uma mulher de passar despercebida. Com seus aparentes cinquenta anos, traz em si a beleza da maturidade e a elegância treinada dos anos Passos firmes contrastam com seu andar suave e feminino que foi seguido por todos os presentes. Um rosto feliz, sem sorrisos frívolos, que, mesmo agora, com ela sentada e absorta em suas atividades à mesa, não esconde a simpatia. Simpatia que sabemos, é uma de suas armas secretas, usada em situações especiais. Agente especial, passa, aos olhos dos outros, como modelo ou atriz, profissões que nunca desejou. Escreve, sabemos, mas o povo ali desconhece sua verdadeira função, apesar de alguns já terem lido suas obras.
Abriu o livro que trazia, Dostoievsk. Seguiu até a página central e delicadamente a acessou, e a ordem lhe chegou, de imediato. Era agora. Ana Maria, mais uma vez na América, em uma primavera praieira, de vento brando e cheiros marinos, diferente do esperado pela paisagem falsamente construída para ornar a loja, que apesar de se fazer francesa, permitia que Elis Regina invadisse o ambiente, com sua voz melodiosa. À mesa, o serviço de louça delicadamente pintado à mão, exibia uma paisagem bucólica de um poente montanhês, onde pequenas figuras de homem, cão, leão e gazela descansavam na grama. Uma paisagem-mentira, como era a nova existência de Ana Maria, mas tão necessária quanto.
O livro emitiu novo sinal. Ela seguiu discretamente para a página em que acessava o comunicador, e o visor estampou sua nova missão. Desconectou a página, travou o aparelho e, de novo, era um livro comum em suas mãos: "Crime e Castigo", amarelado pelo tempo, companhia renitente.
O homem, que a observava de longe, aproximou-se, apesar de não ter recebido nenhum sorriso durante todas as tentativas de chamar-lhe a atenção, antes.
" Ocupada?"
Ela respondeu, séria.
"Sim, esperando um amigo"- o homem não entendeu a cortada e insistiu:
"Aqui tens, um amigo" - alguém deveria dizer a ele que a insistência não era uma característica sedutora.
"Desculpe, senhor, espero um amigo específico." - nem assim o homem a deixou.
Ana Maria ou seja lá qual for seu nome, não quis chamar um garçom para afastá-lo porque queria evitar chamar a atenção. Como se pudesse!
O homem, um marinheiro, começou sua conversa monótona sobre si, alisando a farda como se ela tivesse algum poder sobre a mulher, que se mantinha séria, tomando seu café, esperando.
De repente, os olhos dos poucos presentes se voltaram para a porta, momentos depois de Ana Maria reconhecer o homem alto e moreno que entrava. Emanava poder, e sua presença era puro cinema.
Alinhado num belo terno e gravata, sorriu para a mulher e veio em sua direção. O marinheiro, há muito esquecido, em um sussurro deu voz ao pensamento dos demais frequentadores do Café: "007!"
O recém-chegado aproximou-se da mesa de Ana Maria: "Pronta, madame?". Ela sorriu e, tomando os pertences esquecidos da cadeira, respondeu:
"Ao trabalho, James"
Desafio Fabíola
A Velha Escrita
Material de apoio:
Ana Maria, cinema, 007, carne, vinho, cafeteria, biblioteca, Crime e Castigo