Minha agenda foi seqüestrada!
7:10h
Meu filho estava atrasado para a aula outra vez. Nem levei a bolsa, saí apenas com os documentos de carro. E a carteira, quem sabe compraria um pãozinho para tomar café com minha filha, que ficou vestindo o uniforme enquanto eu saía. Em dez minutos estou de volta, por isso não me incomodo de deixá-la sozinha em casa. Quando chego, ela normalmente já está pronta e me esperando para o café. Depois disso, é a vez dela ser levada para a escola.
Meu garoto estava me esperando no carro, portão da garagem já aberto pelo controle remoto. Que está falhando e nunca me lembro de levá-lo consertar, ou ao menos trocar a pilha. Entrei no carro, joguei a carteira, os documentos e a chave de casa no compartimento da porta e rumamos para a escola.
7:20h
Voltando, já de longe abri a porta da garagem, o controle remoto falhou uma, duas vezes, e o portão só se abriu no terceiro toque. Ele fica preso no pára-sol do carro, é só levantar as mãos e eu o acesso. Assim que entrei com o carro na garagem, toquei-o novamente e o portão foi se fechando, enquanto eu abria a porta do carro para sair.
Foi então que ele apareceu, entrando pelo portão ainda semi aberto. Foi tudo muito rápido, ele segurou meus pulsos, eu gritei, ele me mandou ficar quieta. O portão da garagem se fechou atrás de nós e eu estava dentro do meu carro com um rapaz alcoolizado segurando meus pulsos. Estava tão assustado como eu, e eu não entendi muito bem o que queria, se meu carro, se meu corpo, se entrar em minha casa...
Então me lembrei de minha filha, indefesa e só lá dentro, e decidi que aquele rapaz não iria sequer saber de sua existência. Ele pôs a mão na cintura, não sei se para pegar uma suposta arma ou para desabotoar as calças, mas o fato é que largou meu pulso direito e nessa hora levantei a mão, alcançando o controle remoto do portão. E milagrosamente desta vez ele não falhou: com apenas um toque, de forma precisa, o portão foi-se abrindo devagar com um estrondo inicial que assustou o rapaz. Ele se ergueu bruscamente, gritando “fecha isso”, mas eu lhe disse que iria fechar lá fora: aproveitei seu susto e passei rapidamente a mão no compartimento da porta; agarrei as chaves de casa, e com elas na mão saí correndo para a rua, gritando por socorro com uma potência e um volume dos quais não me julgava capaz. Parei em frente à garagem aberta, para prestar atenção aos movimentos do homem, e gritava, gritava com todas as minhas forças...
Era cedo, não havia ninguém. Um caminhão vinha se aproximando vagaroso, do fim da rua. O rapaz entrou no carro, deu a partida (tentou algumas vezes, o nervosismo o atrapalhava) e saiu cantando os pneus. Resvalou em mim, derrubando-me no chão, e assim que dobrou a esquina o caminhão parou em frente da minha garagem aberta. Levantei-me, pedi para o solícito motorista do caminhão ligar para a polícia, e apertei com força nas mãos meu troféu: as chaves de casa.
7:30h
A rua lotou de vizinhos consternados. Eu estava surpreendentemente calma, meu troféu reluzindo nas mãos. Foi então que minha filha saiu de casa trajando seu uniforme da escola. Desceu as escadas, viu o movimento, a garagem escancarada, e eu a recebi com um sorriso:
- Filhinha, acho que a mamãe não vai poder te levar na escola hoje, roubaram nosso carro...
- Ah, é? – ela respondeu, alheia.
Enquanto minha vizinha conversava com ela, olhei novamente para as chaves na minha mão, fiz o sinal da cruz e chorei. De alívio.
9:00h
A viatura veio me buscar para me levar à delegacia, registrar o boletim de ocorrência. Simpáticos e solícitos, os policiais pediram desculpas pela acomodação. Eu já havia tomado todas as medidas práticas, cancelar cartões, ligar para o seguro, avisar parentes, desmarcar consulta com o médico. Fui na viatura, minha primeira vez, com as pernas cruzadas sobre o banco duro. Foi então que percebi que meu joelho estava esfolado pela queda, e meu maxilar doía. Mas o vento no rosto era maravilhoso.
10:00h
Saí da delegacia, BO em punho. Percebi então que tinha fome, pois não havia tomado café da manhã, mas também não tinha dinheiro (e nem cartões). Fui caminhando para o escritório decidida a ir trabalhar, a coisa mais útil que podia fazer já que todas as providências já haviam sido tomadas. Admirei-me da minha própria tranqüilidade, pensei em minha filha e liguei para saber se estava tudo bem. Nessa hora, senti uma grande paz e uma alegria meio boba me invadiu: intensificou-se em mim a certeza de que pouquíssimas coisas realmente importam.
11:00h
Recebi uma ligação no celular: acharam meu carro. Deveria comparecer à delegacia, num bairro distante, com urgência. Fui de táxi, pedi a seu Eduardo que me levasse na condição de pagá-lo depois. Somos vizinhos, ele e seus colegas taxistas me conhecem de longa data.
15:00
Pedi um papel ao delegado, pois ainda estou aqui, aguardando as providências. O rapaz estacionou o carro e levou a chave, os policiais estão no local, que é próximo a uma favela, e eu estou aguardando um motoboy que minha vizinha mandou para trazer a chave reserva. Enquanto isso, escrevo numa folha de formulário contínuo, apoiada sobre o BO da manhã. Ainda não sei se o carro está danificado ou não, mas na verdade não me importa; apenas três coisas me vêm à mente com insistência.
A primeira, a alegria de ter conseguido manter meu tesouro mais precioso longe de toda essa realidade violenta, graças a uma ajuda externa que fez com que o controle remoto funcionasse no primeiro toque e que eu conseguisse agarrar as chaves de casa, mantendo o perigo da porta para fora. A segunda, a tristeza por constatar que muito provavelmente serei, daqui para a frente, não mais um ser humano mas um ser urbano, refém do medo – perder a paz me assusta muito mais que a violência em si...
E em terceiro lugar, a ironia: minha agenda, a sobrevivente da poça d’água, estava no banco de trás do carro. Não sei se a verei novamente...