Relógio da vida
Acordou sentindo no rosto os primeiros raios de sol da manhã, lá fora os pardais em festa acendiam um dia novo, que poderia ser ainda os dias em que menina acordava com o cheiro da casa antiga, cheirando a chuva da noite anterior, com suas paredes frias, telhas molhadas convidando o sol para acaricia-las.
O dia inicia-se com notas de saudade lembranças de um tempo antigo, o cheiro de café na vizinhança lhe faz voltar no tempo, quando o avô, sempre a madrugar, fazia o fogo, atiçava as brasas com um abanador velho de palha que contava histórias num Vum, Vum, Vum, até que as labaredas colorissem tudo e fosse depositada nas chamas a chaleira com água para o café.
As manhãs parecem ser sempre iguais, quando nossos sentidos nos dão conta que voltamos no tempo pelo cheiro, pelo som, pela saudade.
Presa no tempo em que ainda há um galo no terreiro cantando cedo e acordando o sol, ela se volta aos seus sete, oito anos, e vê o avô correndo pelo quintal nos afazeres do dia. Tem sempre à mão, uma vasilha de ágata com o café torrado para pilar, e na outra, o milho para galinhas. Feliz, abre o galinheiro e faz o chamado: Ti Ti Ti Ti Ti.
As galinhas vêm sem medo, saem do poleiro, deixam seus ninhos onde botaram ovos branquinhos, obedecem ao rito. E enquanto, as galinhas enfeitiçadas pelo chamado comem o ouro, o avô deposita os ovos na vasilha e se volta, e senta-se ao pilão, soca o café: Prack... Preck... Prack.
A vida passa correndo, mas pode-se prender nela, os sons, os cheiros. Os gestos de amor e cuidados não se perdem no tempo.
A manhã acesa à janela, as frestas das telhas dizem que outro dia já é, mas ainda enrolada no quente das cobertas, a menina se volta à lembrança, e consegue ver num vulto, o avô pegar coentro e cebolinhas, correr para dentro da pequenina casa. A água da chaleira já deve ter fervido: Glub, Glub, Glub.
Ainda na cama, ela espia por entre a abertura da cortina de chita que separa o quarto da cozinha, misturada à fumaça, o senhor de poucos cabelos grisalhos, com sua camisa de manga curta e poucos botões fechados tirar a chaleira do fogo, coar o café e cantar, chama o amor de sua vida: _Vem Tiana!
De mãos postas no terço, a mulher reza sem cessar. O dia será mais bonito, ou pelo rito de fé, se ameniza as dores de cada manhã.
Tiana lava o rosto, prende os cabelos finos e lisos num lenço, e levanta com cuidado. Tão pequena e delicada que pode-se pensar ser mãe de algum passarinho. Toma o café feito pelo marido, na xícara de porcelana fina, e com amor chama a neta pra acordar: _ Anda menina, acorda pra vida!
E a menina acorda. No rosto, a luz o sol que não cansa, como bola de fogo acompanha a Terra em seu girar. Já e meio dia. A menina percebe, perdera a hora. Não é mais criança, é sim, uma senhora, mas ainda pode pelo sonho no tempo voltar. Faz da natureza tapete mágico, dos sons e dos cheiros, máquina de se reinventar, e nessa magia, a memória volta quando quer ao tempo de criança, para os avós abraçar. A poesia é o relógio que faz o tempo andar para trás.
Paula Belmino