ADEUS SOLIDÃO
Quando o assunto é música, sou eclético e não fico circunscrito aos Chicos, Caetanos e outros tantos, tidos como o supra sumo da música brasileira.
É claro que os admiro, respeito e até gosto de algumas canções,mas não vou negar o arrepio que sinto quando o polêmico Odair José – tido como brega - depois da linda introdução, pergunta cantando:
"Cadê você? ///Que nunca mais apareceu aqui///Que não voltou pra me fazer feliz///Que nem ligou...///
Neste meu arrepio aloja-se uma certa "saudade alheia" que me transporta para mundos imaginários.
Talvez seja a tal da breguiçe, sei lá.Se for, que seja bem vinda em todas as ocasiões em que eu puder ouvir este refrão.
Mas vamos ao assunto:
O sábado de hoje, com ares nostálgicos, como o são a maioria dos sábados , naquele dia em que a gente sonha algo deslumbrante para a noite e quando esta se achega, quebra o encantamento reservando nada além de algumas comilanças e o marasmo de sempre.
Eis-me aqui a varrer o quintal. As folhas de outono colorindo partes da grama,galhos despidos, uma pombinha e alguns sanhaços deliciando-se de amoras temporãs.
Pensamento armando barracas pelos potreiros do tempo. Vento, silêncios,lembranças...
Retomo na memória uma certa manhã de sábado nos idos de 1972.
A antiga casa em que morávamos, o quintal imenso, pereiras, pereiras e mais pereiras...
Era outono e um tapete de folhas encobria os terreiros.
[ Terreiros precisam ser bem varridos nas manhãs de sábado...Entoavam como se fora um mantra, as mulheres da rua do Fomento ]
No domingo sempre aparece alguém para o almoço, um parente ou comadre para o café das três.Como mostrar-lhes o viço dos canteiros em meio a "folharada" pelos terreiros?
Por conta disso, vassouras corriam a solta naquele trecho de casas com quintais e cercas de ripas.
Retorno do meu trabalho.
Em nossa casa, como tudo era dado a exageros, incluia-se o rádio sintonizado em volume sempre muito alto.
Rádio Atalaia de Curitiba.
[ Era o que a maioria das pessoas do meu bairro ouvia naquela época ]
A canção que tocava naquele momento : "Adeus solidão" com a cantora Carmen Silva.
Sob o pereiral, vassouras e balaios funcionavam como instrumentos afinados de uma grande orquestra.
Na batuta: Dona Hilda, minha mãe, deslisando num quase valseado de vassoura em punho.
A sua voz melodiosa, juntava-se a voz endeusada da cantora nas ondas do rádio.
Sob seu comando, um grupo de jovens ciganas cujo acampamento ficava numa campina proxima a nossa casa.
Saias coloridas, laços nos cabelos, aventais de sêda...Um vai e vem frenético de vassouradas e balaios repletos de folhas a caminho do fundo do quintal.
Carmem , em alto e bom tom, dizia: " Agora eu posso dizer adeus solidão "
As ciganinhas e a dona da casa antecipavam-se na resposta:
"Pois sei que o amor tomou conta do meu coração "
Parado no portão eu apreciava a cena e aquela singeleza me enternecia.
Experimentava naquele instante uma doce ternura familiar.
Hoje, neste minúsculo quintalzinho da minha casa , entre uma vassourada e outra, deixei brotar as pereiras do espírito.
E do portão daquela casa que não mais existe, espiei os sorrisos doces de minha mãe e do grupo de ciganinhas. Recriei o colorido das roupas daquelas que tantas vezes acamparam nos campos ao fundo de nosso quintal e que a cada retorno ao acampamento traziam novos e saudosos abraços, novos sorrisos àquela que tão bem queriam.
Esta tarde de sábado desnuda-se azulada à minha frente e algumas roupas abanam-se no varal.
Entorno além do muro o único volume de folhas que catei. Há um silencioso aconchego pelas cercanias e meu coração vagabundo indaga-me:
"Cadê você ?...///Que nunca mais apareceu aqui..."
Perdão.
Isso é coisa da velhice. Acho que vou tomar um café.