O GARNIZÉ DA RUA " 19 "
Numa movimentada rua de minha cidade, nas imediações de uma moderna agência bancária, alguém possui um garnizé em seu pátio.
Todas as manhãs, a caminho do meu trabalho, meus ouvidos são acarinhados por uma cantiga que me encanta.
As pessoas passam rapidamente, talvez nem se dêm conta do cantante, mas a mim ele consegue mexer com as lembranças.
Quando as férias chegavam, era eu quem dava férias às "moças velhas" (era assim que as denominavam dado ao avançado da idade das três irmãs)que revezavam-se fazendo a entrega do leite em nosso portão.
Assim, de litro em punho, cabia-me a tarefa de buscar o precioso líquido.
Moravam num sítio um pouco distante de nossa casa e eu adorava fazer o trajeto pelos caminhos de mata rala até chegar no grande casarão de madeira, de um amarelo desbotado, cujas janelas pareciam acabrunhadas sondando por trás das figueiras.
Assim que chegava ia logo subindo na porteira como forma d e proteção contra a cachorrada que vinha ao meu encontro.
Com o decorrer do tempo fizemos amizade e a partir de então,eles faziam-me apenas um barulhento cortejo até a escada que dava para a porta de entrada.
Sempre paparicado - o piá da Dida, como elas diziam - tomei muito chá com bolinhos de polvilho e comi muito pão com doce de abóbora - que era para recuperar o desgaste na viagem - como dizia Natália,a do meio, de voz mansa, pele morena e serenidade nos olhos.
Colaca ( era este o seu apelido ) a mais velha, saíra ao pai.Tinha olhos profundamente azuis, falava pouco e de sua aparência fluía uma espécie de melancolia.Debruçada na janela estava sempre em perenes contemplações.
Talvez no viço das acelgas no quintal, no enferrujado outonal das folhas dos caquiseiros ou, quem sabe, nos imensos potreiros nas terras que possuiam por onde o balir das cabras dava o tom a dias iguais.
Maria, a mais nova, quietinha, apenas ouvia as conversas com um ar doce e ligeiramente sorridente,aparentando a placidez de quem já havia conquistado a felicidade.
Vez e outra me deparava com o Sr.Silvestre, o patriarca da familia.De pouca prosa, recomendava-me a não "reinar" no pomar abandonado que existia um pouco além da sanga.
- A velha Filomena enterrou uma panela de dinheiro por ali.Virou "arma dotro mundo" (fazia o sinal da ruz quando proferia estas palavras), ela tem ciume do seu tesouro e se voce for remexer os pés de fruta da casa em que ela morava ela te arrasta pelos cambitos e adeus - piá da Dida -. Um sorriso sinistro, um rastro fedorento de cigarro de palha e o corredor que dava para os quartos o abduzia.
Nem preciso dizer do meu cagaço quando da passagem pelo trecho.Caquis enormes e sumarentos ofereciam-se quase ao alcance de minhas mãos,mas as palavras do ancião funcionavam e eu usava os cambitos para desabaladas correrias.
Mas, e o galo ? O que o garnizé da rua 19 tem a ver com tudo isso ?
Acontece que no caminho de ida, depois de ultrapassar a segunda porteira, cruzando um pequeno carreirinho de mato, deparava-me com uma casinha singela onde moravam o casal Rosa e Damásio, compadres de meus pais.
Tudo limpinho, flores no caminho do poço, pereiras, hortaliças, um pequeno milharal...
Uma cerquinha de ripas e um galinho de cor acinzentada quase sempre sobre a cerca.
De seu peito fluia uma cantiga dolente que procriava todos os meus sonhos de menino.
Era como que eu tivesse entrado naqueles sítios dos livros de minha professora, nas histórias que nos eram lidas - com gestos e empostações teatrais - que nos faziam viajar para mundos desconhecidos.
O galinho daquela casa conseguia a façanha de transportar-me em seu canto para os terreiros que nunca vi, sentir o sabor de frutos que nunca comi, receber abraços de gente que não conheci.
O garnizé da 19 tem conseguido mexer com a cabeça deste velho,ora deixando-me no quintalzinho de dona Rosa, no sítio das "moças velhas", ora levando-me para espaços que desconheço.
Tudo o que sei é que este danadinho me faz feliz!
Joel Gomes Teixeira
Numa movimentada rua de minha cidade, nas imediações de uma moderna agência bancária, alguém possui um garnizé em seu pátio.
Todas as manhãs, a caminho do meu trabalho, meus ouvidos são acarinhados por uma cantiga que me encanta.
As pessoas passam rapidamente, talvez nem se dêm conta do cantante, mas a mim ele consegue mexer com as lembranças.
Quando as férias chegavam, era eu quem dava férias às "moças velhas" (era assim que as denominavam dado ao avançado da idade das três irmãs)que revezavam-se fazendo a entrega do leite em nosso portão.
Assim, de litro em punho, cabia-me a tarefa de buscar o precioso líquido.
Moravam num sítio um pouco distante de nossa casa e eu adorava fazer o trajeto pelos caminhos de mata rala até chegar no grande casarão de madeira, de um amarelo desbotado, cujas janelas pareciam acabrunhadas sondando por trás das figueiras.
Assim que chegava ia logo subindo na porteira como forma d e proteção contra a cachorrada que vinha ao meu encontro.
Com o decorrer do tempo fizemos amizade e a partir de então,eles faziam-me apenas um barulhento cortejo até a escada que dava para a porta de entrada.
Sempre paparicado - o piá da Dida, como elas diziam - tomei muito chá com bolinhos de polvilho e comi muito pão com doce de abóbora - que era para recuperar o desgaste na viagem - como dizia Natália,a do meio, de voz mansa, pele morena e serenidade nos olhos.
Colaca ( era este o seu apelido ) a mais velha, saíra ao pai.Tinha olhos profundamente azuis, falava pouco e de sua aparência fluía uma espécie de melancolia.Debruçada na janela estava sempre em perenes contemplações.
Talvez no viço das acelgas no quintal, no enferrujado outonal das folhas dos caquiseiros ou, quem sabe, nos imensos potreiros nas terras que possuiam por onde o balir das cabras dava o tom a dias iguais.
Maria, a mais nova, quietinha, apenas ouvia as conversas com um ar doce e ligeiramente sorridente,aparentando a placidez de quem já havia conquistado a felicidade.
Vez e outra me deparava com o Sr.Silvestre, o patriarca da familia.De pouca prosa, recomendava-me a não "reinar" no pomar abandonado que existia um pouco além da sanga.
- A velha Filomena enterrou uma panela de dinheiro por ali.Virou "arma dotro mundo" (fazia o sinal da ruz quando proferia estas palavras), ela tem ciume do seu tesouro e se voce for remexer os pés de fruta da casa em que ela morava ela te arrasta pelos cambitos e adeus - piá da Dida -. Um sorriso sinistro, um rastro fedorento de cigarro de palha e o corredor que dava para os quartos o abduzia.
Nem preciso dizer do meu cagaço quando da passagem pelo trecho.Caquis enormes e sumarentos ofereciam-se quase ao alcance de minhas mãos,mas as palavras do ancião funcionavam e eu usava os cambitos para desabaladas correrias.
Mas, e o galo ? O que o garnizé da rua 19 tem a ver com tudo isso ?
Acontece que no caminho de ida, depois de ultrapassar a segunda porteira, cruzando um pequeno carreirinho de mato, deparava-me com uma casinha singela onde moravam o casal Rosa e Damásio, compadres de meus pais.
Tudo limpinho, flores no caminho do poço, pereiras, hortaliças, um pequeno milharal...
Uma cerquinha de ripas e um galinho de cor acinzentada quase sempre sobre a cerca.
De seu peito fluia uma cantiga dolente que procriava todos os meus sonhos de menino.
Era como que eu tivesse entrado naqueles sítios dos livros de minha professora, nas histórias que nos eram lidas - com gestos e empostações teatrais - que nos faziam viajar para mundos desconhecidos.
O galinho daquela casa conseguia a façanha de transportar-me em seu canto para os terreiros que nunca vi, sentir o sabor de frutos que nunca comi, receber abraços de gente que não conheci.
O garnizé da 19 tem conseguido mexer com a cabeça deste velho,ora deixando-me no quintalzinho de dona Rosa, no sítio das "moças velhas", ora levando-me para espaços que desconheço.
Tudo o que sei é que este danadinho me faz feliz!
Joel Gomes Teixeira