Crônicas Médicas - Que caiam as máscaras!
Muito pensei para escrever sobre este assunto (até pelo fato de se tratar de uma crítica a mim mesmo), um tema tão delicado quanto atual, que chega a incomodar as pessoas de tanto que se escuta sobre ele. Mas, como estudante de medicina e futuro profissional da saúde, não pude deixar de falar sobre isso. Espero que me entendam.
* * *
Era uma terça-feira, 16 de março de 2021 para ser mais exato, e lembro-me, como se fosse ontem, da euforia que se apossava de mim naquela manhã. Acordei um pouco antes das oito, enrolei para levantar, vesti uma calça jeans e uma camiseta cinza, tomei meu café e saí de casa por volta das nove. Peguei uma colega de turma e, juntos, partimos para o Hospital Regional.
“Ansiosa para a vacina?” Perguntei, enquanto dirigíamos para lá. “Eu estou.”
“Um pouco”, ela me respondeu, “mas muito aliviada.”
“É, é apenas a primeira dose, mas já dá um alívio tremendo”, complementei.
Quando chegamos ao hospital, meu corpo tremia frente à ansiedade que tomava conta de mim. O estacionamento estava lotado, carros para todo lugar que se olhava e praticamente nenhuma vaga disponível. Dirigi até o final e, apenas lá, encontrei um espaço para estacionar. Tamanho era o entusiasmo e tão frenética estava minha mente que saí do carro e deixei a chave na ignição, fato que só me dei conta no momento de ir embora, algumas horas depois.
Caminhamos até a ala do hospital onde um pequeno grupo de estudantes se aglomerava. Sim, eu sei, não é época para aglomerações, mas quem é que conseguia pensar nisso quando se estava prestes a tomar a primeira dose da vacina contra a COVID-19? Perto das dez horas da manhã, adentramos o hospital e encontrei ainda mais colegas de turma, já em fila, aguardando o início da vacinação.
Essa foi a primeira vez que encontrei a turma toda. Sou novo na faculdade, transferido pouco antes do início da pandemia e, justamente na semana em que as aulas começariam, tudo foi fechado. Desde então, permanecemos com a maior parte das atividades à distância e o pouco que acontecia presencialmente era em grupos reduzidos. Assim, não conhecia a grande maioria de pessoas que estudava comigo.
Em pé naquele corredor, conversei com alguns e cumprimentei outros à distância. Alguns mais simpáticos e abertos, mas todos muito receptivos.
“Pessoal, formem a fila e mantenham distância”, gritou uma das professoras. “Logo a vacinação vai começar.”
Por alguns segundos, talvez minutos, respeitamos o distanciamento, mas, tão rápido quanto nos afastamos um do outro, voltamos a formar grupos para conversar enquanto a professora tirava selfies com os estudantes. Pois é, um momento como esse merecia ser registrado: dezenas de alunos de medicina sendo vacinados contra um vírus que já havia desolado incontáveis famílias.
Como não conseguíamos nos organizar, liberaram os assentos da recepção para que nos acomodássemos e, para lá, fomos levados. Sentados com o espaçamento de duas cadeiras entre nós, não havia espaço para todos e uma parcela dos alunos se dirigiu para fora da ala hospitalar. Em certo momento, devido à, ainda presente, confusão, todos fomos forçados a formar fila do lado de fora e só entraríamos quando chegasse nossa vez de nos vacinarmos. Ali, em poucos minutos, a fila já se perdia da visão de tão grande que estava e as dezenas de alunos se transformaram em centenas.
Enfim, depois de mais alguns minutos, fui encaminhado para a sala de vacinação. Entreguei meus documentos, cedi alguns dados e tomei a tão sonhada primeira dose. É claro que teve foto e uma sensação de alívio quase que imediatamente me inundou. Embora soubesse que ainda não estava 100% protegido, sabia também que um grande passo havia sido dado. Mantive, no entanto, algumas medidas de segurança por mais dois meses, até que a segunda dose completou meu esquema vacinal.
Dessa vez, não houve tanta confusão, não houve aglomeração e tampouco outros colegas de turma. Em um dia de estágio, aproveitei a oportunidade e garanti a segunda dose da vacina.
Gostaria de dizer que a mesma sensação de alívio se apossou do meu corpo ou que o alívio, agora, era maior, mas não foi isso que aconteceu. Passávamos por um dos piores momentos da pandemia aqui na cidade e sabia que, em poucos dias, a situação pioraria ainda mais, fruto de uma flexibilização irresponsável por parte da gestão e de atitudes inconsequentes da própria população. Esta, que costuma criticar seus governantes pela tomada equivocada de decisões, esquece-se de olhar para suas próprias ações e condenar as máscaras no queixo, uma ida ao bar ou a lanchonetes, uma “pequena” reunião entre amigos e as grandes festas clandestinas.
Perdidos em nosso egoísmo, deixamos o coletivo em segundo, terceiro, quarto plano, sem perceber que isso, em algum momento, afetará nossa individualidade. Hoje, e já há algum tempo, a impotência domina famílias e profissionais da saúde, que, ao verem parentes e pacientes estendidos sobre um leito hospitalar, nada podem fazer a não ser torcer e rezar para o Deus que acreditam, se acreditam. Ontem, hoje e amanhã, pessoas choraram, choram e chorarão a perda de entes queridos e amigos que partiram antes do tempo. Enquanto isso, a pandemia se mostra longe do fim e, enquanto as máscaras caem (ou repousam sobre o queixo do indivíduo), conhecemos a verdadeira natureza do ser humano.
Em meio a isso tudo, eu, vacinado e relativamente protegido, agonizo no medo de ver meus pais, minha irmã ou outros parentes e amigos correndo o risco de também me deixarem antes da hora por conta da irresponsabilidade, para dizer o mínimo, de muitos. Irresponsabilidade esta que eu, infelizmente, também carrego comigo, seja pela aglomeração no dia da primeira dose da vacina, seja por outras vezes que decidi me reunir com este ou aquele, sob aquela velha desculpa que muitos utilizam: “eu sei que eles também estão se cuidando”.
Para nossa tristeza, essa desculpa nem sempre vai ser suficiente. Pelo contrário, poderá ser o motivo de nossas lágrimas no amanhã. Infelizmente, a vacina por si só não será a resposta para a pandemia enquanto nós, o povo, não fizermos nossa parte, colocando a mão na consciência e deixando egoísmo de lado, pelo menos por algum tempo, para que, enfim, possamos deixar que as máscaras caiam.