A bolsa e a prece
À altura da Avenida Monsenhor Clóvis Duarte de Barros com a Esquina 90º, foi encontrada por um passante uma bolsa de mulher, pesando vinte quilos, como foi verificado depois na balança da Farmácia Pague Menos. O achador tentou, sozinho e do alto de seus oito anos e quinze quilos, erguer a bolsa. Como era de se esperar, não conseguiu, o que o fez pedi auxílio a outro passante, que tinha a mesma idade do primeiro e cinco quilos a mais. Somaram as idades e os músculos, e foi o bastante. “E agora? O que faremos com esse peso todo?”, perguntaram-se.
“Vamos à delegacia!”, respondeu o mais pesado.
“Não!”, replicou o outro. “A delegacia fica longe. Vamos à rádio, que é aqui perto e faz o mesmo efeito, com a vantagem de ter maior alcance. A polícia tem dificuldade em chegar no Vale da Pelada, nos sítios e povoados, e vai que a dona desta bolsa é rural.”
O outro não se opôs aos argumentos, e não foi preciso jogar par ou ímpar para decidirem o destino da bolsa. Seguiram em direção à rádio, que fica a mais ou menos trezentos passos de onde estavam, passando pela Pague Menos, onde pararam e, por curiosidade, concordaram em pesar a bolsa. “Moça, podemos pesar esta bolsa?”, perguntaram à atendente. “Claro. É R$ 1,00.”. Juntaram moedas e chegaram ao valor da pesagem, sobrando, entre moedas, dois reais a cada. Recolheram as moedas à atendente, e apostaram entre si os dois reais restantes, para ver quem acertaria o peso da bolsa:
“Aposto meus dois reais que tem mais de trinta quilos.”, disse o mais leve. O mais robusto contestou: “Aposto meus dois reais que tem mais de cinquenta.”
Deram-se as mãos e, com esforço, arrastaram a bolsa até a balança, que acusou o peso da bolsa e da bagagem interna: 20kg. Ambos perderam a aposta, mas conservaram os dois reais.
Finda a checagem, trouxeram, com esforço, a bolsa de volta aos ombros, despediram-se da atendente da farmácia e seguiram em destino à rádio. No caminho, por volta dos duzentos passos, pararam para descansar. Deitaram a bolsa no chão e tiveram pena da dona da bolsa: “Coitada. Levar um peso desses pra cima e pra baixo. Num deve ser moleza não. Talvez não tenha perdido essa bagagem toda; talvez tenha abandonado mesmo.”
Mas, fosse como fosse, por querer ou por esquecimento, a bolsa lhe pertencia, e não a eles. Daí que, com esforço, a recolocaram nos ombros e chegaram à rádio, com o objetivo de que a imprensa comunicasse às comunidades urbana e rural que havia uma bolsa na rádio aguardando a dona.
Após os trâmites legais, após esclarecerem ao rapaz da recepção o motivo da visita, foram levados (eles, a pesada bolsa e duas testemunhas) a uma sala onde foi confeccionado um inventário do que havia dentro da bolsa, o qual levantou os seguintes itens, não nessa ordem e importância: uma lista de compras, dois pentes, caneta, blush, uma calculadora, caixa de fósforos, perfume da Boticário, cotonetes, sabonete, uma tesoura, bandaid, três camisinhas, álcool em gel, uma presilha, chiclete, chaveiro, estojo, lápis de olhos, lenço umedecido, dois espelhos pequenos, dois boletos vencidos, corta unhas, óculos de grau e dois de sol, creme dental, escova de dentes, isqueiro, máscaras, tiara, vibrador sem pilhas, duas maças, uma banana, analgésico, cinco moedas de vinte e cinco centavos, um terço, xampu, uma lixa, ansiolíticos, cartão postal, creme hidratante, guarda-chuva grande, kit corte e costura, agenda, toalha, repelente, curativos, linha, agulha, extrato bancário, carnês do baú, uma barra de cereais, um ventilador, fones de ouvido, clips, travesseiro, controle remoto, uma garrafa de café gigante e, finalmente, um par de havaianas usadas.
Infelizmente, entre os pertences, não foi encontrado nenhum documento de identidade da proprietária, razão pela qual os garotos e as testemunhas entoam em um só coro: “Senhor, atendei à nossa prece.”