O general saiu vencedor...
O comando do Exército informou ontem, dia 03 de junho, a decisão de não punir o general da ativa e ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, pela participação em um evento político com o presidente Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro, no último dia 23 de maio. Na nota divulgada, a corporação entendeu que “não restou caracterizada a prática de transgressão disciplinar“ por parte de Pazuello. Logo, com a decisão comandante Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, o processo disciplinar foi arquivado.
Obviamente, os argumentos de Pazuello foram muito bons: ele jogou a desculpa esfarrapada que o ato não foi político. E tal resposta convenceu o Alto Comando de que sua participação no passeio de motociclistas do presidente pelas ruas do Rio de Janeiro, com direito a discurso em um carro de som, que serviu de palanque político para uma fala criticando as medidas restritivas, incentivados palavras de ordem antidemocráticas e o delírio de que a pandemia estava chegando ao fim, não tinha um viés político. O próprio Pazuello discursou, apoiando o seu mestre, a quem ele disse servir, em mais de uma ocasião. Ou seja, o general decidiu fazer o Exército de bobo e o Comando aquiesceu.
Era grande a expectativa em cima desse processo disciplinar – não que acreditássemos que o general fosse mesmo ser punido por sua transgressão, mas não custava nada acreditar que o Exército não se dobraria a mais um desmando do governo federal (triste engano). Esse episódio era a linha divisória que o Exército não deveria atravessar. Todavia, não só a linha foi cruzada, como o salto foi com os dois pés e não há volta. O Regulamento Disciplinar do Exército e o Estatuto das Forças Armadas proíbe a participação de militares da ativa em manifestações políticas. A punição para Pazuello poderia ir de advertência a prisão. Mas o general saiu vencedor nessa disputa com o Exército, o que não é surpreendente. Pois nos bastidores, Bolsonaro defendeu que o militar não fosse punido, usando a sua autoridade como chefe das Forças Armadas e, portanto, superior hierárquico ao comandante do Exército.
Além disso, essa semana o ex-ministro foi nomeado para um cargo de confiança ligado à Presidência. Será secretário de Assuntos Estratégicos, com um salário de R$ 16 mil. Com essa nomeação, Bolsonaro deixou bem claro que não aceitaria nenhuma advertência ao seu ex-ministro da Saúde, desafiando os militares que desejavam uma punição exemplar. Mais uma vez, o presidente impôs a sua vontade, em uma demonstração desnecessária de poder, envergonhando a sua antiga instituição. Desde o início ele disse que era o chefe do Exército e que não aceitaria ter seu poder posto em xeque. O Exército, portanto, cedeu às pressões do presidente e criou nova crise no meio militar (mais uma!).
No entanto, esse episódio nos mostra que o apoio do Exército ao presidente tem se tornado cada vez mais indigesto para os militares, que estão cada vez mais enredado nesse governo. A participação de Pazuello gerou muitas críticas por parte dos militares. O próprio vice-presidente, Hamilton Mourão, general da reserva, demonstrou seu descontentamento e defendeu a aplicação da regra que veta a participação de militares da ativa em atos políticos, sob a preocupação de que “a anarquia se instaure dentro” das Forças Armadas. Todavia, as críticas não surtiram qualquer efeito, pois o caso foi arquivado sem uma punição. O que, ao meu ver, abre um precedente muito perigoso na disciplina e hierarquia entre os militares. É uma decisão que pode trazer consequências amargas a uma instituição tão antiga e que até então, apesar de toda controvérsia que a cerca, tinha respeito dos cidadãos brasileiros.
Tomando emprestada a declaração de Mourão, nosso farda sensata do governo, “se a política entra pela porta da frente de um quartel, a disciplina e hierarquia saem pela porta dos fundos.” Bem, a política entrou no quartel há um bom tempo. Em um passado não tão distante, tivemos o golpe militar de 1964, um período sombrio da nossa história. Os militares se irritaram com a não punição de Pazuello, mas não vi nenhuma reação pela não punição dos militares que torturam e mataram durante os 21 anos da ditadura militar. O Exército quer passar a imagem de uma instituição séria e comprometida com a democracia, mas alimenta os delírios ditatoriais do sujeito que ocupa a cadeira da Presidência da República (eleito com seu apoio e aval para usar a sua imagem), cria lunática dos militares, que foi expulso por insubordinação.
Fica difícil acreditar que o Exército é uma instituição isenta da “cachorrada” da política nacional, quando um número considerável de militares ocupa os cargos civis do governo federal. Como bem se posiciona Paulo Chagas, antigo aliado de Bolsonaro e general da reserva, “presidente, o comandante e o general Pazuello estão contribuindo para a desmoralização e para a queda do prestígio conquistado pelo Exército Brasileiro. Esta decisão põe em risco a autoridade do comandante, por quem tenho grande apreço.”
Essa situação me lembra um caso que ocorreu nos Estados Unidos, no ano passado. O general Mark Milley, principal autoridade militar dos Estados Unidos, pediu desculpas por ter participado de uma caminhada ao lado do então presidente Donald Trump para encenar uma foto na Igreja Episcopal de São João, próximo à Casa Branca, depois de dissolver uma manifestação pacífica contra o racismo (o caso George Floyd) de forma violenta, usando a força policial, em 1º de junho de 2020. O general entendeu que sua presença naquele ato, aparentemente comum, representaria a percepção que os militares estariam envolvidos na política interna. Um militar com consciência de sua posição e lugar é algo raro de ser ver, mas ainda existe. Olha aí algo que poderíamos exportar dos gringos.
A decisão do comando do Exército escancara a sedução pelo poder em que mergulhou a instituição. Caí por terra, se é que ainda havia dúvida, o mito da disciplina e competência dos militares. Revela que só precisou de um capitão para enquadrar o quartel (já podemos reformular a célebre frase do Bananinha, mais conhecido como Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, em que ele afirmou que “basta um soldado e um cabo para fechar o STF”). É a herança da ditadura que não foi passada a limpo: os militares não têm apreço pela democracia e pelos direitos humanos.
Bolsonaro seduziu os militares com prestígio (os ministérios), poder e dinheiro (orçamento maior que o da educação e saúde). No entanto, vender a sua alma ao mito trouxe uma moeda de troca amarga: submissão completa ao seu projeto político. Mas não poderia ser diferente: Bolsonaro apareceu no cenário nacional ao compartilhar seu caso de insubordinação às regras. Assim, era utopia acreditar que haveria punição aqueles que seguem o exemplo do mestre. Não obstante, resta alguma dúvida de que as Forças Armadas, Exército em particular, funcionarem como aparelho de governo, em vez de instituições do Estado?
Encerro com a fala certeira de Malu Gaspar, em sua coluna no jornal O Globo: “um Exército em que oficiais priorizam interesses políticos e pessoais em detrimento do todo não serve mais ao país. Transforma-se em partido político. E, armado, facilmente transmuta-se em milícia.” E infelizmente, de milícias entendemos bem...