O Tatu da Educação
Chica Bêbum meteu o cipó nas costas de Sirizinho; este se contorceu todo. Senti na pele a dor do moleque. A segunda lapada consegui evitar; levei a cipoada no braço, mas sai satisfeito: salvei um couro mole da sangria da ignorância, o meu já tá endurecido pelas decepções com os homens públicos, incapazes de mudarem o destino de outros homens.
Trouxe Sirizinho comigo. Junto, uma pequena trouxa com duas bermudinhas surradas, três camisas desbotadas, e só... bagagem pra rodar o mundo! Não esqueceu o livro: "Educação, a Formula da Vitória. (Instituto Airton Senna) - Módulo de Alfabetização - sete autores para compô-lo; mais orientação geral - tem que ter uma finalidade digna.
O primeiro texto (pág. 7) é de autoria de Sérgio Caparelli..."O BURACO DO TATU - O tatu cava um buraco / À procura de uma lebre / Quando sai pra se coçar, / Já está em Porto Alegre...." Seguem rimas fáceis para aprendizagem, até o Tatu chegar ao Japão. Na página 102, vamos encontrar o texto de Cineas Santos e Gabriel Archanjo: "O MENINO QUE DESCOBRIU AS PALAVRAS... Era uma vez um menino / que, ainda pequenino, / descobriu, todo contente, / que palavra é que nem gente: / umas são festa e alegria, /como palhaço e folia; / outras são sempre tristeza / como doença e pobreza. / Percebeu o menininho / que a palavra carinho / até as plantas entendem, / todos os serem compreendem, / não se conteve e gritou: / "carinho é filho do amor!"...
A nossa rotina - Eu e Sirizinho - já se vai com um mês: dever de casa pela manhã; meio-dia, ora de pegar o ônibus para o colégio na Usina Santana (uma hora batida de viagem); sete da noite, esperá-lo! Final de semana, ele volta pra casa dos pais - assim, apanha menos. E vamos nessa camaradagem em forma de brincadeira de criança. Tento mostrá-lo que o mundo dos adultos pode ser diferente do que ele já viu: fome, desprezo, preconceito.. e um monte de merda humana que gera a segregação social.
Infelizmente, hoje, Sirizinho voltou triste. Não conseguiu assistir aula. Ordem expressa da diretora: "Não entra ninguém sem farda"! Vejamos de onde vazou a merda: O Colégio Municipal Arthur Medeiros - onze salas de aula -atende a oitenta por cento do que podemos chamar de "o esgoto da pobreza" da Usina Santana. A maioria freqüenta o colégio para garimpar a merenda que substitui a falta de comida na casa dos pais. Uma camisa de farda custa dez reais - uma fortuna pra essa gente. A maioria não recebe a migalha da ajuda do governo - Sirizinho é um!
Um detalhe dos bastidores desta história chama mais a atenção: para qualquer camisa feita com fio 30 - impressão monocromática, numa tiragem ampla -, ninguém gasta mais do que quatro reais para confeccioná-la: já incluso ai o "mensalinho" do atravessador entre o órgão do governo e o fabricante. Deduz-se, portanto, que existe algo errado nessa história: primeiro, deixar aluno sem assistir aula por falta de uniforme quando o período letivo já está terminando; segundo, o preço superfaturado do fardamento (nesse comércio, alguém tá surrupiando a diferença dentro da educação); terceiro, a obrigatoriedade da farda acima da necessidade de se aprender...
Convenhamos, nesse buraco tem tatu ladrão - no mínimo, algum Lalau da educação a se esconder no meio dessa terra suja, querendo gastar a sobra (e todo buraco tem sobra) no outro lado do esgoto.
E o pior da história: Sirizinho acaba de aprender que "Preconceito é filho da dor"! Meditemos, então!
Até mais ler pelas máfias da educação da vida.