Recanto da Lenda (*)

(*) Nem tudo são flores no Planeta Jardim - Crônicas de um futuro possível

APIABÁ (20.8 S, 47.5 O), 13/02/3.316

Hoje tive um dos dias mais leves de minha vida. O líder do meu capítulo de pedreiros concedeu-me dois dias de folga, sem prejuízo da caderneta trimestral, e aproveitei para caminhar a esmo pela cidade.

Bem cedo tomei meu café e saí caminhando na direção Sul, para rever aquela área da cidade que há muito não visitava. Pretendia encontrar por lá algum velho amigo esquecido, ou conhecer alguém para conversar. Fui cumprimentando os conhecidos que cruzavam por mim, e logo estava fora de meu bairro, onde quase não conhecia ninguém.

Alcancei a Alameda da Lenda e segui por ela: um caminho antigo e levemente sinuoso, que acompanha o relevo local e, por quase três quilômetros, segue por um túnel de sibipirunas cinquentenárias. Praticamente toda alameda, de qualquer cidade da região de Apiabá, é um túnel de sibipirunas, de jacarandás, ou de ipês desta ou daquela cor, mas a Alameda da Lenda tem algo especial. Talvez sua idade, calculada em mais de 1.300 anos, sem dúvida obra de pioneiros do Planeta Jardim. Por que se chama Alameda da Lenda não sei, teria que perguntar a alguém.

Os bairros do quadrante Sul da cidade em nada diferem daqueles do quadrante Oeste, onde tenho minha residência. Têm o mesmo relevo levemente acidentado, o mesmo padrão de residências, o mesmo traçado de vias públicas, os mesmos tipos de empórios, o mesmo sotaque, talvez algum estilo diferente nos grafites dos muros e fachadas das casas, provável obra de algum artista local mais inspirado que a média.

Entrei por uma via lateral, caminhei meio quilômetro e deparei-me com um tanque de piscicultura. Fui até a barragem e verifiquei que era uma antiga obra de pedra lavrada, com seis metros de altura e paredão em curva côncava e uma pequena cachoeira em forma de lâmina; pareceu-se ter a mesma idade da Alameda da Lenda. Na minha cabeça, batizei a represa de Recanto da Lenda. Os barrancos de jusante haviam sido ajardinados, com passeios em dois níveis, bancos de sentar, escadas de pedra para acesso de um nível para outro, e também para o lado do espelho d’água, a montante. A pequena cachoeira formada regava permanentemente as samambaias, avencas, bromélias. Havia mosquitos, também, graças à mesma umidade que favorecia a vida das plantinhas. Namorar, ali, só passando extrato de citronela ou de cravo na pele.

O jardinete estava um tanto abandonado e por força do hábito comecei a arrancar aquelas plantinhas que não pertenciam ao jardim, podei galhos dos arbustos que passavam da conta. Uma robusta aroeira havia brotado onde não devia e ameaçava tomar o lugar dos assa-peixes. Estava tentando arrancar a aroeira, quando aproximou-se um senhorzinho mais ou menos da minha idade.

— Bom dia!

— Lindo dia, respondi.

Aparentemente ele também não tinha compromisso e alongamos a conversa. Custei reconhecer o amigo. Era o Arildo, com quem havia convivido no Serviço Obrigatório na classe de 21 a 24 anos. Não éramos amigos próximos, mas frequentamos juntos aulas de Arquitetura Residencial, Arquitetura de Equipamentos Públicos, Ergometria, Lógica e, se não me engano, História das Religiões, História das Utopias, essas coisas do quarto setênio. Não eram minhas matérias preferidas. Sempre gostei mais de História da Arte e coisas assim. Também fizemos juntos muitas patrulhas de segurança e inspeção, e tivemos aulas de Cantaria, estas sim as minhas preferidas, sempre.

Arildo gostava mais das ciências econômicas, tanto que depois do Serviço Obrigatório trabalhou quase a vida inteira nos empórios da área Sul da cidade. Não tenho dúvidas que sua alma é mais sensível que a média. Ali sentados, próximo à cachoeira conversamos por quase três horas, e o assunto foi a economia e os impulsos espirituais que a modificam, tema que Arildo demonstrou conhecer por demais.

Depois fomos almoçar no restaurante comunitário mais próximo, onde para surpresa minha os pratos principais eram quase todos à base de peixes. Claro, estava ao lado de um dos principais tanques de piscicultura da cidade. No meio da tarde nos separamos e caminhei até o quadrante Oeste, onde tem uma praça ótima para quem gosta de apreciar o por-do-sol.

Com Arildo, batendo papo no Recanto da Lenda, aprendi – depois de velho – que os avanços da civilização não eliminaram a ganância no espírito das pessoas, e que a vida nos empórios pode ser tão desafiadora quanto nas obras de engenharia, na agricultura, nas fábricas e oficinas.

Vivemos tempos de fartura, e tempos de fartura nos fazem relaxar a vigilância social, e despertam nas almas egoísmos e vaidades próprios do ser humano, que não podem ser banidos do espírito, apenas podem ser controlados mediante treinamento intenso e autocontrole.

Arildo contou-me sobre os desafios de distribuir de forma justa os artigos dos empórios. Cada vez mais comuns são as almas que burlam o sistema de créditos de horas-almas para levar às suas casas mais comida, roupas e equipamentos que o necessário.

Antigamente (creio que até 300 ou 400 anos atrás) os alimentos não eram adquiridos pelo sistema de créditos calculados em horas-almas. Cada um se dirigia ao empório e pegava o que lhe fosse necessário. Em muitas das comunidades começaram os abusos, e os alimentos foram então incluídos no sistema de créditos, da mesma forma que as mercadorias e equipamentos mais escassos, que requerem um controle perfeito da produção e consumo.

O controle dos alimentos não é tão difícil porque quando alguém leva para casa mais que o suficiente, por preguiça de calcular o quanto lhe é necessário, simplesmente não conseguirá comer mais que o suficiente para saciar-se. A abundância facilita o desperdício. Felizmente há fartura de alimentos e os prejuízos para a economia da comunidade têm sido mínimos.

Mais complicado é o caso de almas que acumulam compulsivamente, não por preguiça de calcular suas necessidades, mas pelo simples e secreto prazer de acumular. Duplicam não apenas os estoques de alimentos, mas também os equipamentos domésticos, o guarda-roupas, às vezes fazendo faltar o necessário a outrem. O volume de produção das plantações e das fábricas é planejado de acordo com a demanda dos empórios, onde as pessoas usam seus créditos de horas-almas para autoabastecimento, mas quando ocorrem os abusos cria-se uma demanda irreal, que desequilibra o planejamento da produção.

Preocupante de fato – segundo Arildo -, é o crescente número de almas que manipulam o sistema de créditos para acumular bens supérfluos. Acumulam patrimônio pessoal mediante fraudes no sistema de horas-almas, artifícios de comércio e câmbio no “mercado negro”, e principalmente usam seus postos de liderança para manipular os companheiros de trabalho oferecendo “vantagens” desvantajosas e se apropriando de parte das horas-almas que lhes caberiam.

Chegam a acumular jóias de ouro e pedras raras, que usam por baixo das vestes, para não serem vistos. Ocupam mais de uma moradia, cedem a outrem a moradia supérflua em troca de horas-almas ou de favores, vendendo assim aquilo que receberam graciosamente da comunidade. Em seguida, alegando falsa necessidade, e sabendo que o controle é praticamente inexistente, ocupam outras moradias e assim vão acumulando patrimônio pessoal, usufruindo tudo quanto podem.

Enquanto uns se orgulham de serem capazes de manter uma vida monástica, outros se orgulham de ostentar mais posses que os outros, e fazem pouco caso dos ensinamentos que receberam durante três setênios, nas escolas. O aumento desse tipo de comportamento em todo o mundo, e a tendência para legalizá-lo, é um retrocesso em relação aos avanços humanizantes da Era Atual.

Eu nunca soube das coisas que Arildo me contou. Na simplicidade do meu gênio (melhor seria dizer meu “ingênuo”), sempre concentrei minha consciência na perfeição das obras de cantaria e de engenharia, sem fazer a mínima ideia de que ao meu redor há pessoas que cuidam de si próprias mais que dos outros. Creio que entre os capítulos de pedreiros isso não existe, ou é muito bem disfarçado.

São sinais de que o espírito da Era Atual começa a esgotar-se e que inicia-se uma nova etapa da civilização.

Fico imaginando como será um Giovani Cattoni daqui a 1.300 anos, escrevendo crônicas assim: “Apiabá,13/02/5.616. Hoje fui conhecer um dos novos portentos da tecnologia, a prova definitiva de que o cérebro humano é o mecanismo mais sofisticado do Universo...”

Certamente, nesses futuros dias de civilização ultrassofisticada as almas estarão sedentas de simplicidade e de reaproximação da natureza selvagem, tentando entender o que aconteceu com a Era Atual, do antigo Planeta Jardim, onde nem tudo eram flores mas se acreditava que as pessoas haviam alcançado o ápice da espiritualizada.

Nesse futuro com certeza mais uma vez tentaremos imaginar meios de reconstruir o Jardim do Éden.

Giacomo Cattoni
Enviado por Marco Antonio Mondini em 02/06/2021
Reeditado em 06/12/2023
Código do texto: T7270179
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