Não, Obrigado! Bom Trabalho e Tenha Um Bom Dia!
Segunda-feira é sem dúvidas o dia mais corrido na oficina. É quando os carros das famílias retornam de viagem com mil e um defeitos e uma enxurrada de peças para trocar. Ainda assim, trabalhar no que a gente gosta torna tudo muito mais fácil de encarar, mesmo que seja uma manhã de segunda feira, mesmo com o frio querendo que meu corpo volte pra cama quente e mesmo que o meu colega Afonso esteja gritando e xingando alguém no telefone, esse ainda é um dia bom.
- O que aconteceu? - perguntei a ele quando a chamada encerrou.
- Essa porcaria de operadora não para de me encher o saco! - exclamou ele pegando uma chave de roda – já me ligaram mais de 30 vezes só esse mês para me oferecer uma droga de plano de dados. Mas dessa vezes eles ouviram umas poucas e boas! Duvido se vão ter coragem de voltar a ligar!
Era engraçado vê-lo bravo daquela forma, tanto que os outros companheiros de serviço também começaram a zoar ele. Era um dos momentos de descontração que tínhamos.
No canto da oficina, uma televisão exibia o jornal local, falando sobre a prisão de um indivíduo, após o furto de algumas casas enquanto as famílias saiam para trabalhar. A notícia chamou nossa atenção porque um dos nossos amigos já havia sido vítima do criminoso.
- Tá vendo só! - proclamou Afonso – Quer levar vida boa sem trabalhar, dá nisso!
Todos nós concordamos. Era revoltante ver alguém roubar o que outros tantos suaram pra conseguir. De volta ao serviço, continuamos naquela atividade de parafusos, óleos e dispositivos de leitura para injeção eletrônica.
O horário de almoço chegou com um alívio inexplicável, como se a ansiedade do leão que rugia em nossos estômagos finalmente fosse ser correspondida. Era o momento de guardar as ferramentas e para ir para um self-service que ficava do lado da oficina. Todos nós, menos o Seu Rivelino. Funcionário experiente, Seu Rivelino havia sido motorista de ônibus por quase toda a vida, até se aposentar e ter que voltar a trabalhar para complementar a renda de casa, defasada pelo tratamento que a esposa fez contra um câncer. Ele trabalhava em acordo com o dono da oficina, porque se sua carteira fosse assinada, teria seu benefício cancelado. Afonso sempre reclamava pelas costas de que aquilo era injusto, que tirava a vaga de emprego de alguém mais qualificado e que devido a sua idade, só atrasava o ritmo da equipe de funcionários.
Alguns concordavam com essa perspectiva, mas eu não conseguia conceber algo assim. Quando entrei no emprego, foi Seu Rivelino que me ensinou o básico de mecânica e como consertar carros antigos. Ele também ensinara boa parte dos outros funcionários e se aparecesse algum defeito que não conseguíamos lidar, ele dava jeito, como se fosse o MacGyver da mecânica brasileira. Afonso, via isso como nada menos que a obrigação dele, mas em um mundo onde todos querem levar vantagem em cima de todos, uma postura assim não deveria ser elogiada ao invés de criticada?
Por mais que a visão de Afonso fosse apurada, ele não percebeu que Seu Rivelino estava mais magro, ou ainda que haviam dias em que ele não se juntava com a equipe no self-service para compartilhar do almoço e das conversas. Após um comentário de um outro colega, descobrimos que a saúde de sua esposa havia regredido e que precisavam de um tratamento mais efetivo. Ele então vinha se dedicando a horas extras e economizando o almoço para conseguir manter o dinheiro dos remédios. Por fim, decidimos fazer uma vaquinha e comprar uma marmita para que ele pudesse pelo menos se alimentar direito para continuar o trabalho. E antes que perguntem, sim, Afonso também colaborou.
Aquela segunda-feira continuou seu curso natural. Ao fim da tarde, a televisão agora exibia o noticiário nacional, trazendo uma manchete acerca de uma funcionária de telemarketing, que havia tirado a própria vida no banheiro da empresa onde trabalhava e que coincidentemente era a mesma operadora telefônica de Afonso. Segundo as investigações, a atitude foi cometida após ouvir constantes reclamações de clientes e segundo seus colegas, ser pressionada por melhores resultados para a empresa. Quando o jornal exibiu o áudio da última ligação realizada, foi possível ver todo o retorno agressivo de quem havia atendido. Mas não, não era o Afonso, era uma outra pessoa. Um desconhecido tão irritado quanto.
O fim do expediente havia chegado. No ônibus, enquanto voltava pra casa, pensava na mulher que havia tirado a própria vida e em toda a pressão que a jogou no desespero. Pensava também sobre a atitude de Afonso. Algumas coisas são irritantes, mas vale a pena a gente descontar na primeira pessoa que vê? Será se o dinheiro que é pago a ela no final do mês compensa todas as ofensas e a pressão por resultados? No fim, só consigo pensar que, enquanto temos de escolher entre isso e morrer de fome, tudo o que conseguimos é morrer como humanos, vítimas de uma severa anemia de empatia.
O amanhã chega como outro dia, tão semelhante ao ontem, mas com cicatrizes que o evidenciam ser um novo hoje. Enquanto verifico a fiação de um farol de milha, meu celular toca: é um número desconhecido. Ao atender, uma moça cita meu nome completo e ao confirmar minha identidade, oferece um plano de internet e ligações ilimitadas. Um filme passa na minha cabeça antes de respondê-la, mas a resposta não poderia ser outra, além da mais óbvia até então: