Canto de rouxinol

Rompe a aurora ao norte e seus raios de luz acordam a relva e as flores que tranquilas dormem umedecidas e geladas pelas gotas de orvalho da madrugada. Grilos e cigarras que passaram a noite assobiando agora procuram as frestas entre troncos para se abrigarem da claridade. A noite fria e escura se foi para dar lugar a um sol, que majestoso, vem clareando e aquecendo toda a flora.

Sob os primeiros raios de luz, as flores desabrocham e a relva se movimenta levemente embalada pela brisa matinal. No galho das árvores, os bem-te-vis eufóricos sacodem as asas e cantam anunciando o novo dia. O empolgamento deles é visível, audível e contagiante. Com grande alvoroço e em bando, uma vez que alegria genuína é aquela que é compartilhada, vivida junto. Saltitam de galho em galho, inclinam a cabeça para trás, levantam seus bicos para cima e lançam seus pios ainda na penumbra, prenunciando o alvorecer.

Impressiona-me que a extravagância do canto dos bem-te-vis, em grupo, comece discreta. Digo isso, porque que antes que as kéferas¹ caiam sobre a terra, eles, os bem-te-vis, lançam seu assovio tímido, solitário sob o dia ainda enevoado e frio. São pequenos sons abafados que logo se tornam estridentes. Quando se juntam formam uma grande algazarra. Feito este alvoroço. Está consumado! Temos o novo dia, desponta soberano o sol, e os bem-te-vis voam para se aquecer e buscar alimento. A vida continua.

Do alto dos galhos da goiabeira um canto agudo com sons que se repetem insistentemente, “fogo-pagou, fogo-pagou”, despertam-me a atenção. Rolinhas Fogo-Apagou empoleiradas gorjeiam em bando familiar, cinco delas, uma ao lado da outra como que se aquecendo e se protegendo. Próximo a elas um ninho raso e frágil, berçário de crias que nasceram ali tranquilas, longe das ameaças.

Rolinhas de Nossa Senhora como minha avó chamava-as, são aves do bem, dóceis, harmoniosas. Sempre pousam serenas em bandos familiares para se alimentar. E eis que entra no quintal a dona da casa entretida com seus afazeres domésticos fazendo com que o bando de rolinhas se disperse e alce voo. O atrito de suas asas lembra o chocalho de uma cobra cascavel. Curioso paradoxo desses pássaros que se apresentam angelicais e nos surpreendem quando voam, pois ouvimos o som de criaturas peçonhentas.

O sol altivo, a brisa brinca com os galhos da roseira que curvados pendem para baixo devido ao peso das rosas volumosas por muitas pétalas sedosas e cheirosas. Doce brisa que carrega o cheiro daquelas flores para longe. Na calmaria da manhã, apenas as folhas do coqueiro balançam e se encostam umas às outras num balé aéreo de sons e performances com o vento.

Inesperadamente o silêncio é rompido por um canto. Lá no telhado, na biqueira da calha, surge um rouxinol de plumagem avermelhada, pequeno porte. Seu canto insistente com assobios, gorjeios e trinados é audível por todo o quintal. Eis que me ponho a ouvi-lo, e começo a me sentir bem como se uma quietude e serenidade se instalassem ali naquele momento. Há o tic-tac do relógio, a buzina do automóvel, a notificação do celular, os boletos e preocupações, as palavras não ditas, os sentimentos abafados, as dores suportadas e um turbilhão de sensações barulhentas que se alojam em mentes de pessoas que flertam com a taciturnidade, mas ainda assim aquele canto me resgatou, e como de súbito me levou para longe dali. Pronto! Não estamos mais no quintal e o lugar que agora se apresenta talvez seja um paralelo entre lá e aqui. E o “lá” é bom! Olhos fechados, pés fora do chão e pensamentos nas nuvens em estado de encantamento, porque o rouxinol ainda canta.

E justamente porque ele canta vago entre dimensões desconhecidas que são sustentadas por cheiros, sons e sentimentos de plenitude. Certa vez, li algo sobre a essência não física que se separa da matéria quando entra em experimentações de contemplação e êxtase. Isso só seria possível através de sonhos ou da exaltação de sensações como odores de lugares da infância a exemplo da casa de uma avó, cheiro da comida materna, perfume usado por um grande afeto que se foi ou até mesmo sons, melodias de instantes intensos vividos, que foram registrados na memória afetiva do indivíduo e ficaram ali arquivados, adormecidos, esperando o momento para serem liberados e assim fazer com que os pés saíssem do chão em completo estado de enlevação. Não, não me atrevo a alongar-me nesses devaneios, pois é um campo de muitos caminhos, que honestamente não sei para onde levam. Porém, suspeito que há coisas que não podemos dizer, apenas sentir.

O rouxinol silencia e sinto meus pés de volta ao chão. Sou sacudido pela realidade do vento balançando os galhos da goiabeira agora atacada por pipiras azuis e pretas agitadas que disputam e devoram os frutos maduros. Comem apressadas, porque a tarde já avança e o início da noite já se anuncia. Os bem-te-vis voltam assanhados, inclinam a cabeça para trás, levantam seus bicos para cima e lançam seus cantos ao final da tarde. São celebrantes do ritual de encerramento do dia. E o fazem com vigor e estridência, afinal cumpriu-se mais um desenrolar das horas e num movimento giratório a Terra realizou sua rota em torno de si mesma, para que o majestoso sol deixe a lua brilhar. Os bem-te-vis empoleirados e quietos adormecem encolhidos. Logo a manhã virá. A vida continua!

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¹ Kéfera: Tem origem egípcia e significa “primeiro raio de sol da manhã”. Esse é o nome de uma divindade de bastante relevo na mitologia egípcia, que é considerada a encarnação do Sol.

Paulo Elrond de Valfenda
Enviado por Paulo Elrond de Valfenda em 31/05/2021
Código do texto: T7268547
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