O desafio é arrumar nossa casa interior
Publicado no jornal Diário Popular de 29 e 30/05/2021 (pág. 05) - Pelotas/RS
Jogo fora os cadernos velhos do tempo de escola. Separo para doação os livros já lidos que não pretendo reler e as roupas que nem lembrava mais que tinha. Ponho numa sacola os cosméticos vencidos. Quando me liberto de coisas antigas, há muito tempo guardadas, parece que libero espaço em mim mesma para novas vivências.
Os papéis serão reciclados, e os livros poderão ser aproveitados por jovens estudantes quando a situação da pandemia permitir que as bibliotecas de escolas novamente ganhem vida com a visita do público. Alguém terá roupas quentinhas para usar no inverno rigoroso que aparentemente se esboça antes da hora neste ano, aqui no sul do estado. Certifico-me de levar a coleção de esmaltes a uma farmácia que garanta o descarte adequado.
Antes de me desfazer de objetos pelos quais tenho lembranças afetivas, permito-me sentir as emoções que eles evocam. Deixo as memórias virem, sentarem comigo, e tomamos juntas um chá de frutas vermelhas com bolo formigueiro. Conversamos sobre momentos felizes, e lágrimas sorriem ao cair no rosto.
Por vezes, nesse diálogo com minhas coisas, elas me escutam reclamar de algo do passado e lançam aquele olhar que diz “Sério, isso de novo?”, e logo percebo não fazer mais sentido ter tanto incômodo. É como se o processo de psicoterapia ganhasse forma na prática - no movimento de levar a mão até o fundo da gaveta, encontrar algo que não se quer lembrar, e obrigar a si mesma a tomar uma decisão: desapegar daquilo logo de uma vez ou deixá-lo guardado por mais um tempo, até chegar o dia de uma nova limpeza. Nessa ação de transformar o entorno, a terapia parece passar do abstrato (pensamento, memória) ao concreto (atitude, trocar coisas de lugar). E, depois, o inverso também acontece: o retorno do concreto ao abstrato, quando a ação prática ressoa na alma, e a clareza enfim chega no plano das ideias. Arrumo o que consigo enxergar para organizar o que não está tão visível.
Onde estavam as caixas de esmaltes das mais diversas cores, agora estão novos livros. Onde ficavam os cadernos do século passado, agora fica mais bem acomodada a pasta com os diplomas e apostilas da faculdade a que ainda penso precisar fazer uma consulta, em algum momento. As fotografias dos porta-retratos da cabeceira não são mais as mesmas que ali estiveram por vários anos. A sensação é de casa, ares e mente renovados.
Não sigo nem um terço dos preceitos do “Feng Shui”, prática chinesa que possibilita harmonizar casas e apartamentos por meio da decoração, da disposição dos móveis, do uso de certos objetos e cores, etc. Tampouco assisti na Netflix à série de Marie Kondo, guru japonesa da organização. Porém, depois de ter lido que para dormir bem é melhor evitar espelhos refletindo a cama, conferi o exato lugar onde ficam os do meu quarto. Os pequenos e numerosos espelhos da sala foram posicionados de frente para a porta da frente, de modo a refletirem possíveis más energias que pudessem entrar.
Quando mudamos para melhor o ambiente, promovemos nele um tipo de tratamento terapêutico, que pode ajudar a equilibrar a energia, segundo o “Feng Shui”. Vou além: o desafio é arrumar nossa casa interior, e ele exige coragem para remexer, paciência para fazer os movimentos necessários, para então tentar pôr ordem em pensamentos e emoções. Sinto que posso transformar a mim mesma, reorganizar os armários da mente e, sem limitações de espaço, decorá-la a meu gosto.