ASAS DE NÃO VOAR

lisieux

Assim que nasci, ganhei asas.

Acho que um anjo, muito do safado, queria que lhe fizesse companhia.

Assim, deu-me asas. Asas e poesia.

Ou asas de poesia, sei lá.

Meu primeiro choro já foi cadenciado, com o ritmo da trova; minhas dores de barriga, certamente, faziam-me berrar estrofes que só minha mãe, também poeta, entendia.

Minhas canções de ninar foram sonetos... Meu quarto de dormir, não era quarto, era quarteto... O terço com que minha mãe me “encomendava” à santa de devoção, era terceto... e a forma poética tomava conta dos meus sonhos.

Vivi a minha meninice brincando em poça d’água, ouvindo canções de chuva no quintalzinho cimentado, pequeno e feio... mas que as minhas asas faziam parecer imensidões. E a mirrada pitangueira cujos galhos ultrapassavam o muro do vizinho e balançavam na direção do meu olhar de menina, parecia a única das árvores de mágica floresta... floresta sobre a qual minhas asas me alçavam, a descobrir ninhos de pardais, a fotografar o verde desbotado que parecia tão viçoso aos olhos infantis.

Ninguém, porém, conseguia ver-me as asas. E eu não entendia como, pois elas saiam teimosamente pelas mangas da camisa surrada, cresciam velozmente, mais que os meus anos me espichavam, e, a cada vez, me levavam mais longe, mais alto... em direção ao espaço anil.

Adolescente, as asas já me tomavam o corpo, substituíam braços que não conseguiam abraçar o mundo. As asas podiam... não só abraçar como ficar acima dele. Por ter asas, eu não precisava pisar o chão, o lodo, a lama. Não tinha porque ferir os pés em pedregulhos ou espinhos. Do alto, asas abertas, planava sobre o universo, indiferente à realidade. E as canções de protesto, nos lábios juvenis, tomavam forma de hino, cântico de passarinho, trinado de amor e de paz.

Amigos, parentes, professores, ninguém enxergava as asas... e isso me parecia bom, pois assim, ninguém me podia impedir de voar.

Adulta, as asas não me cobriam mais apenas o corpo... extensão de mãos e de alma, tornaram-se meu próprio eu. Não tinha mais fisionomia, formas, a não ser as grandes e brancas asas, passaportes de liberdade.

Mas... um dia, sem que eu percebesse, as penas começaram a cair... primeiro uma, talvez quando consegui o meu primeiro emprego, ingressando no universo competivo e cruel, no mercado de trabalho... Outra se foi quando me casei... outra mais, e mais outra, ao nascimento de cada um dos filhos, a cada noite de sono perdida, a cada ruga de preocupação com o futuro das crias.

Várias delas de só uma vez, à primeira desilusão de amor... Outras tantas através das decepções com verdadeiros e falsos amigos... E a quase totalidade das restante, à ultima das desilusões, canto de cisne da maturidade...

Com o passar do tempo, assim como os artelhos já não mais nos obedecem, minhas asas cismaram de desaprender voar. Foram mirrando...

Engraçado que, quem não as via quando eu era jovem, passou a enxergá-las quando elas já estavam meio despencadas e sujas...e, em vez de tentarem limpá-las, escovar as penas, restituir-lhes a beleza e majestade, qual nada... ajudavam, maldosamente, a arrancar-lhes as penas... a quebrar-lhes as pontas...teimavam em tentar escondê-las sob os vestidos... principalmente, ironia, sob as vestiduras brancas da religião, que deveria ser o território preferencial dos seres alados, sonhadores, libertários e puros.

E, a cada vez que eu tentava, teimosamente, alçar vôo mais uma vez, alguém, como passarinheiro, estava a postos, estilingue em punho, e...lá se ia, levada pela pancada e pelo vento, mais uma leve e frágil peninha branca.

Hoje, ainda tenho asas. Infelizmente ainda as tenho, bem camufladas pelas mil máscaras que sou obrigada, diariamente, a ostentar...

Mas são asas de não voar. Pássaro engaiolado, arrisco derradeiro cântico. Ainda que nem eu mesma, muitas vezes, não mais o consiga escutar.

BH – 06.11.07

lisieux
Enviado por lisieux em 07/11/2007
Código do texto: T726731