"A vida continua"

Eu sou desses que acredita que o seguir da vida é uma faca de dois gumes; uma perfeita dicotomia; o ying e yang da vida. Não sei exatamente se é um consolo dizer a alguém “fique tranquilo, a vida continua”, porque genuinamente não sei dizer se nosso modelo é bom o suficiente para continuar sendo seguido sob padrões de sucesso.

Mas eu nunca chego em um texto do nada, sempre há um caminho, nos últimos meses, o caminho da análise, ou da falta dela (foi exatamente nas férias do meu analista que comecei a escrever), mas dessa vez, incrivelmente, e digo novamente: INCRIVELMENTE, esse texto nasceu na rua. N-A R-U-A! Um evento de dimensões incontáveis!

Eu fui à rua, mas rua é uma subestimação, eu fui à Avenida Presidente Vargas, justamente o local que eu não gostaria de visitar agora. O Centro do Rio foi, durante os últimos anos, o meu lar. Lar não é sinônimo de casa; casa é estrutura física; lar é amor. E sendo assim, no Centro eu sempre sou inundado de amor, mas eu não estava pronto para voltar lá, pelo menos não agora, não em um cenário em que tudo está confuso e estranho. Mas a vida se impõe, ela faz questão de se apresentar como senhora de mim e de todos os meus caminhos; no sábado a tarde eu fui informado que deveria ir ao Detran da Presidente Vargas. Remarcar era uma possibilidade, mas eu odeio adiar as coisas, sendo preciso ir, fui. Ao longo do caminho a regra era clara: entra, resolve e sai; entra, resolve e sai; entra, resolve e sai.

Então o metrô chegou na Uruguaiana, então eu saí, então eu estava no coração do Centro do Rio. Eu não estava preparado para sair no meio do Saara; enquanto andava pelo meio da Avenida Buenos Aires, o meu coração batia descompassado, como se quisesse sair do meu peito e bater violentamente em um dos sinos de qualquer igreja, anunciando que o filho pródigo estava de volta. Cheguei ao Detran, entrei, resolvi em menos de 30 minutos o que fui resolver e saí, agora, não mais em direção ao metrô, somente fui andando pela Avenida. Havia um chamado, eu sabia para onde era, sabia exatamente aonde meus pés me levavam, sabia para onde a minha presença estava sendo inquirida. No caminho, olhava abismado para tudo, o Centro estava lá, ele ainda era o mesmo. Ao longo do último ano estive lá apenas uma vez, mas à noite, era diferente, estava no Centro, mas não no meu Centro; aquele espaço por onde eu estava andando era meu, era o Lar.

Eu sabia para onde meus pés queriam me levar, e mais ou menos às 10:30 de um dia de sol e céu azul, meus pés pararam, eu estava em frente a ela: a Candelária. O lugar mais místico e mítico do Centro. Atravessei a rua e me sentei em um dos mármores que ornam um dos jardins do CCBB, ali, olhando para ela, a enorme igreja que abençoa a avenida mais importante da cidade e abre os caminhos ao mar, eu chorei copiosamente. Todo o choro preso na garganta saiu de forma violenta; eu estava na Candelária, nosso último encontro havia sido há 1 ano e seis meses. Uma vida. Quanta coisa havia mudado de lá para cá, quantas portas foram abertas, fechadas e abertas novamente. Quantos débitos eu tenho com a vida por tantas coisas boas, quantos débitos por estar vivo e saudável; mas quanto crédito e tenho com a vida por tanta dor que vem sendo sentida por mim, quanto ela me deve por cada lágrima desse penar de mortes, o quanto ela me deve por me fazer sentir a dor dos outros.

Em nosso último encontro, em uma tarde quente de verão, enquanto eu andava de bicicleta por toda a Orla Conde, meu país tinha mais de 450 mil pessoas vivas, pensar nisso fez com que o choro continuasse; eu estava lá e ainda posso estar, entretanto, mais de 450 mil pessoas não podem mais. 450 mil. O fundo do poço, ou um poço sem fundo.

“A vida continua”, eu sei que sim, mas lá, eu entendi que ela continuava por imposição diária, porque diferentemente do que estou prestes a aprender na autoescola, não há marcha-ré no tempo, não há como retroceder o relógio, não há como pará-lo o suficiente para analisar o caos e chorar por cada tragédia. A gente vai andando e chorando, e secando as lágrimas, e rindo, e agradecendo, e se lamentando, e pensando que tudo poderia ser diferente. Que bom que a vida continua e nos permite caminhar para um cenário diferente da dor, que pena que a vida continua quando, na verdade, deveria parar o suficiente para nos fazer sentir toda a sua força e momentaneidade.

Sequei as minhas lágrimas, registrei a Igreja em imagens externas e fui embora. Minha relação com ela sempre foi secular, não seria diferente agora. Precisava andar. Caminhei bastante. Constatei que a vida continua igual, o Centro ainda está lá, igual, parado como eu sempre soube que estaria. O diferente ali era eu. A vida ainda é a mesma, a vida continuou. Há de continuar. Há de seguir. Há de ser melhor. Há de me conduzir a um local diferente.

Caminhar decidido, pela estrada que ao findar vai dar em nada.

Nada. Nada. Nada. Nada. Nada. Nada. Nada. Nada. Nada. Nada. Nada. Nada.

Do que eu pensava encontrar.

Pedro H Ribeiro
Enviado por Pedro H Ribeiro em 30/05/2021
Código do texto: T7267263
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