A MOÇA DA "PRUDÊNCIA"

Uma vez por mês ela aparecia. Primeiro na casa de meus tios,depois em nossa casa.

Havia todo um "ritual" na expectativa de sua presença, que incluía o batido discurso de minha mãe, endereçado ao primo "Tião" e à mim.

-Vão "desencracar" e arrumar-se .Quero vocês limpos e cheirosos.Caso contrário nem inventem de aparecer na sala quando da presença da "moça da Prudencia".

Como éramos , digamos assim..."gamados" pela dita cuja, a bucha colhida na cerca d e ripas, corria à solta para o processo de"desencraque".

Cheirosos e nos trinques - Tio Elias nos cedia umas besuntadas de óleo Dirce nos cabelos, enfiados em nossos trajes de missa, púnhamos à espera da nossa musa.

Dona Hilda, a esta altura já havia preparado uns quitutes para servir à celebridade.

O dinheiro da mensalidade já havia sido deixado por meu pai e dobradinho sob a imagem de Santo Antonio estava à espera para "honrar o compromisso".

Um carro a deixava na esquina da rua do Fomento e ela percorria a pé o pequeno trecho da rua até nossas casas.

Enquanto cobrava na casa de meus tios, um rosário de recomendações nos era dirigido no melhor estilo sargentona:

-Bicalhas caladas, vocês sabem que em bocas caladas não entram moscas.Façam bonito, não falem de boca cheia, sejam educados.Não me matem de vergonha...Por caridade!!!

Eis que, senão quando, a "moça da Prudência" adentrava pelo jardim de nossa casa.

Na soleira da janela, Tião e eu, a observávamos embasbacados.Dona Hilda ajeitava a cascata negra, mirando-se no espelho do canto da sala, abria o seu melhor sorriso e saía ao encontro da recém chegada.

Esta, de saias justas, sapatos de salto alto,cabelo cortado "em partes" como mamãe costumava dizer, era toda sorrisos e agrados, sempre carregando uma pequena pasta apertada entre o peito.

Ao passar pela janela, nos provocava os mais inesquecíveis frios na barriga quando nos chamando de " meus amadinhos" fazia pequenos afagos em nossas cabeças cheirosas, ainda que lambuzentas de óleo de cabelo.

Já na sala, falava da temperatura, tomava um cafésinho, degustava uns biscoitinhos enquanto abria a pasta que trazia junto ao peito retirando dela um bloco de recibos.

Tião e eu, com as mãos em concha amparando nossas caras de "nhengos de vila", a observavámos em seus mínimos detalhes.

Os seios arfando sob a blusa, o colar de pérolas - legítimas ? ou não - umas em tamanho de uma bolinha de gude, outras mais miúdas e uma espécie de nó na altura do peito.

O colar pendia e ela o ajeitava delicadamente.Alguns anéis nos dedos, unhas longas e bem esmaltadas e um bom volume de pulseiras em seus pulsos.

Cheirosa e bonitona, preenchia o recibo e de uma cartela retirava dois sêlos que depois de colados eram validados com uma generosa batida de carimbo.

Assim que despedia-se, um recibo a mais ia para a caixa de chapéus Ramenzoni que fivaca sobre o guarda roupa.

Acompanhávamos até que ela chegasse ao automóvel que lhe esperava e num rastro de poeira ela distanciava-se para retornar um mês depois.

De volta pra casa, ainda meio atordoados, devorávamos com apetites leoninas tudo o que restara dos quitutes que lhe haviam sido preparados.

"Prudência", era uma espécie de plano de aposentadoria que meu pai - muito prudente - pagava religiosamente todos os meses.

A cobradora era um encanto ! Meu primo e eu, tínhamos por ela nossos amores platônicos e se a "Prudência" não deu lá muito certo para os planos de meu pai, à nós,foi muito bom enquanto durou.

Um dia, eu era muito criança para saber os reais motivos , meu pai enfurecido apanhou a caixa de chapéus com todos os recibos e nos ordenou.

-"Taquem fogo nesta bosta !"

Com os corações dilacerados pela ausência daquela figura que adentrava como que numa passarela,em passos altivos com suas saias justas, saltos altos e aquele cabelo...

Fomos vendo a caixa arredondada consumir-se pelas chamas.

Muito tempo depois, meu pai, muito prudente, aposentou-se, mas...Sem contar com a "Prudência".

IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 29/05/2021
Código do texto: T7267170
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