A casa velha
Eu lembro.
Da jabuticabeira, bem na frente.
Eu lembro.
Da jabuticabeira, bem na frente.
Vez ou outra, ariscos ladrõezinhos, os bolsos repletos de silhuetas redondinhas, as mãozinhas melecadas, se escapuliam como um bando de pássaros assustados, aos meus olhares agourentos por detrás da cortina de renda da sala. Manchas pretas na calçada... e hoje as memoráveis floradas, como fractais reveladores da destreza do criador, são só imagens nos álbuns de fotografias.
Do lamacento e negro “córrego” de vermes, ladeado, como um rio de margens arborizadas visto de longe, por um típico arbusto que não sei nominar. Uma velha tábua de veios rachados era a única ponte para a estrada de chão batido: um desafio para um ciclista afoito como eu. A migração dos ricos para os pontos altos da cidade, onde morávamos, não tardou a tapar tudo com asfalto, frio e sem graça e não mais fomos agraciados com a presença da simpática trupe da prefeitura que vinha capinar as beiradas das estradas.
Do antigo banheiro fora de casa.
Muito vagamente recordo-me de apoiar as mãos nas laterais do redondo buraco para não cair num banho nada agradável. Mais uma relíquia que o saneamento básico extinguiu.
Do galinheiro, que me rendeu a primeira dolorosa separação. Eu nunca fui espiar a fria degolação das aves, num dos cantos do terreno. Mas a perda foi marcante. Quem mandou fazer amizade com a galinha...
Galinheiro, banheiro, tudo era madeira crua que o tempo acinzentava. Também da primeira casa, a primeira de todas. Quase apagada é a memória aqui, mas o cômodo, que depois virou quarto de dormir, era de início a cozinha. Dela sobrevive a mobília: um armário suspenso e um balcão sem pia, que hoje, já lascados e desgastados, guardam coisas de quintal; e uma mesa com cadeiras de madeira maciça, tudo em azul-celeste, provas cabais de que não se fazem mais móveis como antigamente.
Da primeira reforma, um emaranhado de imagens fluídas ainda permite recordar que a vida de auxiliares de enfermagem de ambos os pais deixou quase tudo sem tinta por anos a fio. Mas, enfim alvenaria: um esperançoso sinal de progresso para a família. Sala de estar, dois quartos de solteiro e um quarto de casal, porém, ainda tiveram que aguardar muitos anos.
Lembro com clareza dos forros, pois, nos locais dos nós dos galhos que haviam se desprendido, sobraram livres passagens para todo tipo de insetos rastejantes para o sótão, um local que, trepando audaciosamente numa cadeira e fazendo alguns malabarismos acrobáticos, eu conseguia visitar de vez em quando. Em casas pequenas, sótãos e porões são pequenos museus familiares. Uma mala com trajes ultrapassados e empoeirados; um conjunto de chá, com detalhes de metal enferrujado circundando o vidro transparente; uma garrafa marrom, envolta por barbantes como uma bobina: fontes inestimáveis para a imaginação criadora de um infante...
Eu lembro.
O quarto de casal era deveras interessante.
Paredes duplas de madeira, exceto na divisa com um dos quartos de solteiro. É hilário lembrar de meu pai reclamando de espiarmos por um buraquinho, tapado depois com esparadrapo. Mas, a mais rica memória é dos antiquados rolôs, espécies de persianas de filetes de madeira amarrados. Os vários anos e as prováveis estripulias dos três irmãos tornaram-nos algo como pontes pênseis de madeira apodrecida de filmes de aventura, que ninguém quer atravessar. Nada mais resta dessas maravilhas. O jogo de quarto, porém, todo envernizado, de pé firme e forte ainda serve minha mãe, já viúva. Fechado à chave, o guarda-roupa foi qual cofre, onde meu pai escondia as barras de chocolate no Natal e as bolachas que não deveriam ser consumidas todas em uma semana. Meu pai, talvez como muitos antigos, queria móveis de madeira boa, durável. O velho jogo de sofás permanece, já vestido de novas roupas, porém.
Meu pai tinha um velho barbeador elétrico Remington, do tempo em que a estética não era clean. Um velho rádio também animou algumas noites nas mãos de meu irmão mais velho. Tínhamos uma pequena TV portátil vermelha, presente de meu avô materno que a trouxe em seu Fusca branco, ainda só com imagens preto-e-branco e que foi a única por muito tempo. Através dela eu vi Os Trapalhões, ainda com Didi naquele tipo de bicicleta de roda grande na frente. Levando-a sorrateiramente para o quarto, com cuidado extremo para não fazer o assoalho ranger e acordar meus pais, assisti, espremido, os vários episódios de Sexta-Feira 13 e jamais me conformei com as vítimas que teimavam em ir justamente na direção de Jason.
Eu lembro.
Da calçada feita de tijolos maciços sem argamassa, formando um quadriculado.
Eu lembro do tanque de água, quase uma piscina, necessidade da época, mas que foi virando depósito de quinquilharias e que, depois aterrado, foi lar de algumas flores. Hoje, apenas seu chão sobrevive como suporte de uma caixa d’água de fibra que serve de cisterna, na pequena horta que minha mãe, colona até a adolescência, ainda tem prazer em manter, apesar das dores nas costas quando capina.
Lembro bem das inúmeras árvores frutíferas que meu pai cultivava: videiras, laranjeiras, abacateiros, pessegueiros, tangerineiras, pereiras, enfim, a terra era aproveitada não só para ser coberta por cimento. O enorme abacateiro era nave espacial e seus galhos, suportes de balanço. O quintal era playground. Um pequeno carvalho era vizinho da jabuticabeira, na frente de casa. Entre eles a calçada de entrada. Quanto trepávamos, todos os irmãos, naquela árvore. A dificuldade era desafio, motivação.
A segunda reforma trouxe, enfim, maior modernidade. Uma pintura. Paredes em alvenaria. Mas reforma para quem não tem dinheiro de sobra precisa reutilizar tudo o que pode. O velho assoalho quase todo foi reaproveitado e continua liso e limpo como um espelho. Algumas peças de forro e as vigas da cobertura também permaneceram. Acho que algumas famílias de cupins também ainda prosperam no madeiramento, lembrando que nada é eterno.
A casa velha já não existe mais. As ruas em frente não podem virar quadras para jogar “taco”, nem para andar de bicicleta livremente.
As árvores frutíferas foram cortadas.
Os móveis agora não podem sofrer mudança que já ficam desengonçados como girafas recém-nascidas.
A TV é smart com conexão de internet.
As calçadas todas cimentadas.
A casa velha, porém, sou eu, é você.
Feliz daquele que tem uma casa velha na memória. Este sabe de onde veio e para onde vai.
Maio de 2021
Do antigo banheiro fora de casa.
Muito vagamente recordo-me de apoiar as mãos nas laterais do redondo buraco para não cair num banho nada agradável. Mais uma relíquia que o saneamento básico extinguiu.
Do galinheiro, que me rendeu a primeira dolorosa separação. Eu nunca fui espiar a fria degolação das aves, num dos cantos do terreno. Mas a perda foi marcante. Quem mandou fazer amizade com a galinha...
Galinheiro, banheiro, tudo era madeira crua que o tempo acinzentava. Também da primeira casa, a primeira de todas. Quase apagada é a memória aqui, mas o cômodo, que depois virou quarto de dormir, era de início a cozinha. Dela sobrevive a mobília: um armário suspenso e um balcão sem pia, que hoje, já lascados e desgastados, guardam coisas de quintal; e uma mesa com cadeiras de madeira maciça, tudo em azul-celeste, provas cabais de que não se fazem mais móveis como antigamente.
Da primeira reforma, um emaranhado de imagens fluídas ainda permite recordar que a vida de auxiliares de enfermagem de ambos os pais deixou quase tudo sem tinta por anos a fio. Mas, enfim alvenaria: um esperançoso sinal de progresso para a família. Sala de estar, dois quartos de solteiro e um quarto de casal, porém, ainda tiveram que aguardar muitos anos.
Lembro com clareza dos forros, pois, nos locais dos nós dos galhos que haviam se desprendido, sobraram livres passagens para todo tipo de insetos rastejantes para o sótão, um local que, trepando audaciosamente numa cadeira e fazendo alguns malabarismos acrobáticos, eu conseguia visitar de vez em quando. Em casas pequenas, sótãos e porões são pequenos museus familiares. Uma mala com trajes ultrapassados e empoeirados; um conjunto de chá, com detalhes de metal enferrujado circundando o vidro transparente; uma garrafa marrom, envolta por barbantes como uma bobina: fontes inestimáveis para a imaginação criadora de um infante...
Eu lembro.
O quarto de casal era deveras interessante.
Paredes duplas de madeira, exceto na divisa com um dos quartos de solteiro. É hilário lembrar de meu pai reclamando de espiarmos por um buraquinho, tapado depois com esparadrapo. Mas, a mais rica memória é dos antiquados rolôs, espécies de persianas de filetes de madeira amarrados. Os vários anos e as prováveis estripulias dos três irmãos tornaram-nos algo como pontes pênseis de madeira apodrecida de filmes de aventura, que ninguém quer atravessar. Nada mais resta dessas maravilhas. O jogo de quarto, porém, todo envernizado, de pé firme e forte ainda serve minha mãe, já viúva. Fechado à chave, o guarda-roupa foi qual cofre, onde meu pai escondia as barras de chocolate no Natal e as bolachas que não deveriam ser consumidas todas em uma semana. Meu pai, talvez como muitos antigos, queria móveis de madeira boa, durável. O velho jogo de sofás permanece, já vestido de novas roupas, porém.
Meu pai tinha um velho barbeador elétrico Remington, do tempo em que a estética não era clean. Um velho rádio também animou algumas noites nas mãos de meu irmão mais velho. Tínhamos uma pequena TV portátil vermelha, presente de meu avô materno que a trouxe em seu Fusca branco, ainda só com imagens preto-e-branco e que foi a única por muito tempo. Através dela eu vi Os Trapalhões, ainda com Didi naquele tipo de bicicleta de roda grande na frente. Levando-a sorrateiramente para o quarto, com cuidado extremo para não fazer o assoalho ranger e acordar meus pais, assisti, espremido, os vários episódios de Sexta-Feira 13 e jamais me conformei com as vítimas que teimavam em ir justamente na direção de Jason.
Eu lembro.
Da calçada feita de tijolos maciços sem argamassa, formando um quadriculado.
Eu lembro do tanque de água, quase uma piscina, necessidade da época, mas que foi virando depósito de quinquilharias e que, depois aterrado, foi lar de algumas flores. Hoje, apenas seu chão sobrevive como suporte de uma caixa d’água de fibra que serve de cisterna, na pequena horta que minha mãe, colona até a adolescência, ainda tem prazer em manter, apesar das dores nas costas quando capina.
Lembro bem das inúmeras árvores frutíferas que meu pai cultivava: videiras, laranjeiras, abacateiros, pessegueiros, tangerineiras, pereiras, enfim, a terra era aproveitada não só para ser coberta por cimento. O enorme abacateiro era nave espacial e seus galhos, suportes de balanço. O quintal era playground. Um pequeno carvalho era vizinho da jabuticabeira, na frente de casa. Entre eles a calçada de entrada. Quanto trepávamos, todos os irmãos, naquela árvore. A dificuldade era desafio, motivação.
A segunda reforma trouxe, enfim, maior modernidade. Uma pintura. Paredes em alvenaria. Mas reforma para quem não tem dinheiro de sobra precisa reutilizar tudo o que pode. O velho assoalho quase todo foi reaproveitado e continua liso e limpo como um espelho. Algumas peças de forro e as vigas da cobertura também permaneceram. Acho que algumas famílias de cupins também ainda prosperam no madeiramento, lembrando que nada é eterno.
A casa velha já não existe mais. As ruas em frente não podem virar quadras para jogar “taco”, nem para andar de bicicleta livremente.
As árvores frutíferas foram cortadas.
Os móveis agora não podem sofrer mudança que já ficam desengonçados como girafas recém-nascidas.
A TV é smart com conexão de internet.
As calçadas todas cimentadas.
A casa velha, porém, sou eu, é você.
Feliz daquele que tem uma casa velha na memória. Este sabe de onde veio e para onde vai.
Maio de 2021